segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Espírito dionisíaco
quer engolir-me,
arrastar-me.
Vomito-o no chão
nas paredes
e no tecto.
Todo ele,
que me quer uma só vez 
exclusiva,
instintiva, 
sensível,
vulnerável...
Para as suas fantasias!
(Bastardo doente!)
Para me induzir nessas longínquas viagens
que me sugerem comprimidos
ou líquido dos deuses...

Declaro a minha retirada
do campo de batalha.
Quero hoje Dionísios cavalgando-me
profundamente na minha vagina.
Uma vez só
quero esquecer tudo o que de humano existe.
Tudo o concebido
e ser religiosamente amoral!
Desviar-me
por espaços obtusos
onde não há tempo
nem sequer espaço.
Quero abandonar-me
e ver-me resistir em sofrimento.
Não cesses de me violar!
Hoje não quero saber. 

Eis-me aberta para acolher o atroz
desde que seja vida.


Sofia Carvalhinha
                                     REFLEXÕES EM TORNO DE RICHARD RORTY
                                                              CARLOS FRAZÃO
             
               Richard Rorty é, para alguns, um herético, ou seja, o seu pensamento coloca-se num campo cujas linhas se definem como heterodoxas face às pretensões tradicionais da  actividade chamada "filosofia" . Contudo, a tradição filosófica não é ela mesma um terreno pacífico, o que pressupõe, desde logo, o questionamento em torno das coordenadas que definem o que é filosófico.
            Se buscamos um método ou um objecto, problemas ou estratégias, o que se nos depara é uma incontornável dissidência, uma profunda ausência de consensualidade. Manuel  M.  Carrilho é claro quanto a este ponto quando afirma: " A conflitualidade que assim se gera é indirimível - e, sem dúvida, altamente patógena (...). Derrida não é filósofo do ponto de vista de Searle; Searle não é filósofo do ponto de vista de Derrida. Que significa isto? Trata-se de um operador retórico que significa que eu não entendo aquele discurso, que há uma incomensurabilidade entre esses dois discursos". E mais diante: " É uma conflitualidade entre posições que têm pretensões muito variadas.Tão diferenciadas que distinguem logo os próprios problemas (...). O que é um problema  para Lyotard não o é para Habermas; o que é um modo de tematizar um problema para Habermas não o é para Lyotard, e assim sucessivamente " .
            Ora, é precisamente este diferendo que nos conduz a um certo reconhecimento, aquele que recusa ou exige pensar a filosofia como ciência. Digamos que o modelo de cientificidade, de objectividade, constitui e institui o desejo mais ou menos reafirmado por um certo discurso filosófico, como os de  E. Husserl e B. Russell no início deste século, cujo objectivo seria a construção de um "saber" que se filosófico (seja a " fenomenologia ", seja a " filosofia analítica ") então rigoroso e científico. Rorty é dos que assume a urgência de tal recusa, detectando algum desespero nesse desejo, nessa intenção de tornar a " filosofia uma ciência de rigor ". O carácter "fundamental" e "fundacional" que aí se vislumbra estava destinado a uma tarefa irrealizável. Como nos diz o mesmo autor em  A Filosofia e o Espelho da Natureza : "Em resultado, quanto mais "científica" e "rigorosa" se tornava a filosofia, menos ela tinha a ver com o resto da cultura e mais absurdas pareciam  as suas pretensões tradicionais".
            A conflitualidade filosófica - implícita ou explícita  mas, decisivamente, real - faz-nos derivar da questão epistemológica, enquanto modelo referencial, para aquela outra, a que se articula em torno do que se considera um problema "filosófico". Podemos tentar compreender o trabalho filosófico a partir de algumas categorias, como seja a noção de "problema". Contudo, se a filosofia não pode ambicionar à consensualidade científica, não pode, desde logo, pretender definir as suas características a partir de uma noção em que se reconhecem profundas variações, apostas diversas, confrontos sempre por decidir. O que pode é rever-se  numa heterogeneidade que sempre a tem perseguido.
           Se há problemas específicos, há seguramente estratégias conflituais de abordagem, de identificação discursiva, de tratamento especulativo. É para esta realidade que nos alerta Manuel M. Carrilho ao confrontar filósofos como Lyotard e Habermas (mesmo admitindo a atenuação dos conflitos na intersubjectividade comunicativa que este último filósofo reivindica). No fundo, o que se pretende realçar é a dinâmica, a maleabilidade das questões filosóficas, ou seja, os problemas colocados pelo saber só se estruturam e desenvolvem no interior de referências contextuais (culturais, políticas, filosóficas) e  no âmbito das frases,  das " metáforas "( Davidson ) que os dizem.
          O trabalho do americano Rorty não deixa de estar presente ao longo destes eixos de articulação (numa perspectiva contextualista e nominalista, como veremos), eixos que, de algum modo, determinam a filosofia contemporânea. Esse trabalho só é, aliás, inteligível se o  relacionarmos, no campo das influências sempre polémicas, com as expressões do pensamento mais significativas das últimas décadas, a começar pela filosofia analítica. Os membros do "Círculo de Viena"  (M. Schlick, O. Neurath, R. Carnap)  marcaram algumas das convicções de Rorty, nomeadamente as que se prendem com a definição e com  a actividade a que a filosofia deve obedecer. Como sabemos, o que estava em causa para esse grupo de pensadores era a necessidade de "purificar" a filosofia, não lhe reconhecendo um conteúdo específico, por inexistência de problemas e de verdades estritamente filosóficos. A tarefa seria outra,  o seu objecto é a linguagem, a busca do significado dos enunciados. Estabelecia-se  a intenção  de eliminar  toda a  "metafísica" como projecto essencial da filosofia tradicional. Para os neopositivistas e seus seguidores as proposições metafísicas não têm significado e, deste modo,  não tem sentido perguntar se são verdadeiras ou falsas. Não são, na realidade, proposições, mas pseudoproposições. Para não nos alongarmos mais, digamos que a questão é assim colocada porque o critério  definidor do significado  das  proposições - e  qual  ele  é  no caso de o ter - é o critério "famoso" da verificabilidade. Conhecer o significado de uma proposição é afirmar como pode ser verificada (Karl Popper propõe , como sabemos, o princípio da  falsabilidade, o que é, mais do que uma correção, uma inversão do princípio).
              Não estando em equação, por agora, uma maior explanação da crítica de Rorty à filosofia analítica (segundo ele: "Uma variante da filosofia kantiana, uma variante marcada principalmente pela consideração da representação como mais linguística do que mental, e da filosofia da linguagem em detrimento da " crítica transcendental ", ou da psicologia, como a disciplina que exibe os fundamentos do conhecimento "), o importante é reter que o filósofo americano é partidário desta função terapêutica  (Wittgenstein) da filosofia, enquanto exercício de supressão dos pseudoproblemas que obliteram a sua actividade.
               Mesmo tendo em conta que a filosofia analítica não foi  um   "pensamento revolucionário, mas um movimento reaccionário", e este aspecto é muito importante pelo impacto e vastidão que teve, não podem ser tidas como despiciendas  as consequências que derivam da chamada " viragem linguística ", mesmo que nada mais tenha sido que uma mera "variante da filosofia Kantiana".
            O movimento analítico é dominado pela obnubilação  da  "consciência", do  "sujeito"  e opta por se centrar sobre a linguagem. Para os neopositivistas a possibilidade e os limites do conhecimento assumem uma nova interpretação. Há uma redescrição da problemática gnoseológica. O lance desloca-se agora para a possibilidade e para os limites da linguagem. A pergunta é pelo "que podemos dizer?" e não, como fizeram os empiristas e Kant, "que podemos conhecer? ", de modo a garantir sentido, significado ao que se afirma, ao que se diz.
               O pragmatismo americano   (C. Peirce, W. James, J. Dewey)  igualmente contribuiu para a construção do pensamento  rortyano ao  implicar, apesar  das  suas  diferenças  internas,  uma  ruptura  com  a filosofia ocidental.  Richard Rorty  refere-se  ao  "pragmatismo  como anti-representacionalismo"  (logo como anticartesianismo ) e não hesita mesmo em afirmar que: " Peirce, James e Dewey podem deixar de ser tratados como provincianos. Pode ser-lhes dado o lugar que eu penso que merecem na história do progresso intelectual do Ocidente ".
         O anti-representacionalismo é um anti-essencialismo, como veremos, que Rorty não se cansa de apregoar, bem como uma fuga ao cientismo, sempre redutor e hipnótico  (fuga particularmente presente na modulação actual do pragmatismo, como é o caso de Davidson).
         A importância da primeira geração da corrente pragmática  está, entre outros contributos,  no  facto  dos seus autores rejeitarem o cartesianismo  (Descartes foi, segundo Quine, o primeiro a conceber a   "ideia da ideia ", indo Rorty até Locke, como sendo  aquele que forneceu a  "causa"  para a invenção da mente) e, de um modo geral, na recusa de perspectivas que concebam a possibilidade de determinação dos fundamentos  últimos do conhecimento.
            Peirce, fundador da referida corrente de pensamento, foi veemente na sua célebre crítica ao criador da filosofia moderna. John  Murphy, na  obra  O Pragmatismo,  refere exactamente as  características  do que chama o  " espírito do experimentalismo" em Peirce, como oposição ao espírito do cartesianismo, desde a negação da dúvida universal como indiciadora da reflexão filosófica, do teste da certeza enquanto esta é dada à consciência individual, bem como a não aceitação de que a filosofia deva apresentar-se como uma única cadeia de inquérito.
          Rorty  não deixou ainda de prestar homenagem a uma corrente que não só se desviou de uma versão representacionista, contemplativa do conhecimento  (sem, contudo, deixar de considerar algumas teses como suspeitas), como, de algum modo, foi precursora de "uma mudança de maré ", no dizer de Davidson, face  ao confronto da filosofia da linguagem com a metafísica tradicional.
         Antes de terminarmos esta já longa introdução, não podemos deixar de salientar também as leituras e análises que Rorty dedica a autores como Foucault (a episteme), Derrida (o desconstrucionismo), Heidegger, combinando-as com a filosofia analítica contemporânea, como Quine (a questão da clivagem entre verdades analíticas e verdades sintéticas, por este rejeitada)  e o já citado Davidson (a interpretação radical), assim como o ênfase que coloca  nos contributos pragmatistas e perspectivistas presentes na concepção do "eu" freudiano, não  esquecendo  a importância que assumiu,  no  seu neopragmatismo, o abandono da noção de " mente " em  Wittgenstein, que levou o filósofo das Investigações Filosóficas a romper com qualquer teoria geral da representação.
 
 1  As Caracterizações do Pragmatismo

 1. 1. Um anti - essencialismo

          Rorty começa por definir o pragmatismo como um anti - essencialismo, aceitando a máxima de James quando este  diz que a " verdade"  é "o que é bom na via da crença". Colocada assim a questão, somos conduzidos para uma concepção que abdica de uma teoria do conhecimento como representação.  Esta teoria defende que há uma correspondência espelhar entre a "mente" que capta e  as coisas ou estados de coisas que nessa relação se "dão" na sua essência  à apreensão. Tal visão representacionalista, essencialista, sustenta que há uma adequação  de ideias e objectos,  termos e coisas, frases e mundo. O conhecimento humano pode aspirar, na sua estrutura interna, a constituir-se como uma verdadeira apropriação da estrutura interna da realidade, ou seja, o que aqui se defende é um isomorfismo entre (estruturas) unidades de conhecimento e unidades do que pensamos ser o mundo.
          O pragmatismo rejeita qualquer teoria da verdade, embora não duvide da existência do mundo como algo exterior e independente da nossa própria experiência sensorial. Aliás, "verdade"  e  "essência" em nada vêm esclarecer esta tese realista, bem como outros conceitos do vocabulário tradicional (sistémico) da linguagem filosófica,  como, por exemplo, a  problemática  epistemológica  das  relações  tradicionais sujeito-objecto. Não é essa, pois, a questão. O que se trata é a recusa de conceber que entre o  pensamento e o seu objecto haja uma essência a apropriar, o que desde logo nos envia - se se defender que há - para a assunção de perspectivas verdadeiras ou falsas, consoante estamos ou não perante a posse de (mais) verdades. Ora, para Rorty , é necessário instalar a desilução nesta pretensão epistemológica. Não há qualquer critério ou fórmula que nos indique o passo certo para que a razão realize a precisão de uma representação: apropriação representacional (N. Goodman).
        O espelho da mente -  adoptando a metáfora da mente como espelho da natureza -  leva  a uma dupla interrogação (e que é uma dupla inutilidade, segundo Rorty):  a que se prende com a vantagem de acreditar em verdades, vantagem que não se esclarece, embora fosse urgente uma resposta, e  uma  outra  de  carácter - talvez  ainda  mais  decisivo e radical -: qual a certeza que uma teoria  do mundo nos fornece para que possamos acreditar que corresponde à imagem exacta do mundo real?
        O que é preciso dizer é que não há factos "em si ", factos puros desligados de teorias. Todo o  processo avaliativo do conhecimento implica que qualquer correcção, qualquer acerto, não pode nunca ser demonstrado objectivamente, pois não possuímos instrumentos lógico-discursivos libertos da realidade exterior. Toda a interpretação é um acto de simbolização, de construção  e redescrição,  configurando uma pluralidade de perspectivas (metáforas) sobre um real des-substancializado. Como nos diz Nelson Goodman:  " Por mais que se possa ainda dizer acerca destes modos  de organização, eles não são " descobertos  no  mundo ", mas  construídos no interior de um mundo".
         A linguagem da prática, da acção, da comunidade deve substituir o vocabulário gasto (e, por isso,  inútil, como vimos) da representação, da "theoria", da verdade. Deve recusar, diz Rorty,  
" que compreender como conhecer melhor  é compreender como melhorar a actividade de uma faculdade quase-visual, o Espelho da Natureza, e pensar, por consequência, no conhecimento como uma montagem de representações exactas. Surge depois a ideia de que a maneira de possuir representações é encontrar, dentro do Espelho, uma classe especialmente privilegiada de representações tão constrangedoras que a sua exactidão não possa ser posta em causa. Estes fundamentos privilegiados serão os fundamentos do conhecimento e a disciplina que nos dirige para eles - a teoria do conhecimento - constituirá o fundamento da cultura. A teoria do conhecimento será a investigação daquilo que compele a mente a acreditar, assim, que ela é desvelada. A Filosofia, enquanto epistemologia, será a busca de estruturas imutáveis que devem conter o conhecimento, a vida e a cultura - estruturas dispostas pelas representações privilegiadas que ela estuda". 
        A máxima de James, e que Rorty quer adoptar, sintoniza um outro programa, o programa de um pragmatismo que nos convida a  avaliarmos as ideias, não por serem verdadeiras ou falsas, mas pelas suas consequências e implicações, ou seja, a  "verdade  é  o que é bom na via da crença".
 
 
1. 2. Um holismo ou contextualismo

        Contextualismo na rejeição em considerar qualquer essência atemporal das coisas, seja o bem, a verdade, a razão, o belo ou qualquer outro  dispositivo.  Mais, as distinções entre essência e aparência,  razão e desejo, razão e vontade, não fazem qualquer sentido. Supor essa dicotomia é, precisamente, defender uma noção de verdade que se fundamenta numa representação precisa  (decalcada) da realidade. É acreditar que o mundo é sempre a última instância de apelação a que recorremos para nos assegurar  o que é verdadeiro; que só ele pode decidir inelutavelmente o destino das nossas crenças. Esta obsessão por uma racionalidade representacionalista,  esta vontade de verdade (que Nietzsche detectara no pensamento ocidental)  deve ser abandonada enquanto consagra - no círculo vicioso das suas próprias ambiguidades - uma ilusão (quando pretende efectivamente pôr fim a todas as ilusões ): a que pensa  destacar o mundo  dos  factos do mundo das interpretações, distinguindo estes dois planos na assunção de um mundo livre de interpretaçôes. Ora, toda a leitura sobre o mundo é sempre um corpo organizado de metáforas (jogos de linguagem, segundo Wittgenstein), relativizada pelo confronto com outras alternativas teóricas. Citando, mais uma vez, N. Goodman, sabemos que: " Predicados, imagens, outras etiquetas, esquemas, sobrevivem com falta de aplicação, mas o conteúdo desaparece sem forma. Podemos ter palavras sem um mundo, mas nenhum mundo sem palavras ou outros símbolos ".
        O  pragmatista luta contra um modelo de raiz platónica (ele mesmo apenas um jogo de linguagem), contra uma cultura filosófica que propõe um padrão,  uma metodologia que garante à consciência  regras de inteligibilidade aptas a determinar o que é o universo, a história, a moralidade, a cultura. O modelo epistemológico tradicional  encontra na metáfora da visão o seu paradigma. A racionalidade pensada numa aproximação à percepção visual como referente analógico, permite  falar  de "uma teoria  contemplativa  do  conhecimento" (como chamava  Dewey), duma mente que fixa a realidade através de procedimentos - justificados  nos seus objectivos e estratégias - em ordem à crença numa verdade (partilhada na tradição ocidental, tanto pela modulação platónica como pela kantiana) e configuradora de leis racionais, constantes e  harmónicas. A conformação  (o  mapeameento, a figuração, a correspondência)  entre estas leis e o  universo é como que a execução de um desenho concebido por uma  episteme superior, aquela mesma que nós nos esforçamos por imitar com a actividade da nossa inteligência. Só poderíamos, aliás, ter a pretensão de descobrir relações matemáticas e geométricas entre os corpos celestes, se a sua própria estrutura  for matemática e geométrica (Galileu). A ciência que está em nós  implica, portanto, uma realidade racional, isto é, uma racionalidade contida nas próprias coisas, na essência do mundo: aos nossos conceitos científicos, correspondem, no mundo objectivo, as formas (sg. as  ideias, os princípios) dos seres, que são como conceitos reais ou substanciais (uma epistemologia que é uma ontologia - Hegel). A identidade de natureza  entre a  razão que está  presente no sujeito  e a razão que está presente nos objectos permite conceber uma ordem inerente ao mundo, epistemológica e ontológica (repita-se),  ordem essa que é simultaneamente inteligibilidade e moralidade, representação e  linguagem (pense-se, com particular realce, no Górgias de Platão).
        Rorty visa  abandonar este modelo cultural, este vocabulário.  Diz - nos: "Uma época histórica dominada pelas metáforas oculares gregas pode, sugiro eu, ceder o passo a uma outra em que o vocabulário filosófico que incorpore estas metáforas pareça tão bizarro quanto o vocabulário animista dos tempos pré -clássicos  ".
        A abordagem holista  (de ressonância behaviorista, como o autor refere) do conhecimento passa pela recusa do projecto epistemológico do platonismo (e de toda e qualquer intenção epistemológica), por essa certeza associada ao "olho mental límpido".
        O pragmatismo reivindica que quando a inteligência conhece não é para conhecer, mas para agir. Uma ideia não é por si mesma verdadeira, torna-se verdadeira. O que é verdadeiro é o que é eficaz no plano do pensamento, como o bem é o que é eficaz no plano do comportamento. A verdade, por conseguinte, não é absoluta, mas relativa. Dizendo de outro modo, é o rendimento do pensamento na acção que nela e por ela mede a sua eficácia, logo a verdade. Recordando Peirce,  a função do pensamento será produzir crenças, constituindo estas a motivação que leva os homens a agirem. A prática é mais decisiva, mais determinante que toda a representação ou contemplação.
       Assim sendo, não haverá já lugar para uma demarcação entre episteme e moralidade, nada nos convida a estabelecer fronteiras de objectividade, territórios de inclusão ou exclusão. O  que se trata é de compreender, nos seus contextos, a pluralidade das práticas comunitárias surgidas em diferentes registos discursivos.

1.3. Um nominalismo

          Em "Contingência, Ironia e  Solidariedade", escreve Rorty: " É que tal discurso da correspondência recupera precisamente a ideia de que o meu tipo de filósofo pretende ver-se livre, a ideia de que o mundo ou o eu têm uma natureza intrínseca. Do nosso ponto de vista, explicar o sucesso da ciência ou a conveniência do liberalismo político falando de "adequação ao mundo" ou de  "expressão da natureza humana" é o mesmo que explicar por que razão o ópio dá sono falando da sua faculdade dormitiva. Dizer que o vocabulário de Freud diz a verdade acerca da natureza humana ou que o vocabulário de Newton diz a verdade acerca dos céus não é uma  explicação do que quer que seja. É apenas um cumprimento vazio - cumprimento que  tradicionalmente  dirigimos a escritores cujo jargão inovador consideramos útil. Dizer que não existe uma natureza intrínseca não é dizer que a natureza intrínseca da realidade se tenha afinal revelado, assaz surpreendentemente, ser extrínseca. É dizer que a expressão "natureza  intrínseca" é uma expressão que nos valeria a pena não utilizar, uma expressão que gera mais dificuldades que proveito. Dizer que deveríamos abandonar a ideia de uma verdade que se encontra diante de nós à espera de ser descoberta não é dizer que descobrimos que, diante de nós, não há qualquer verdade. É dizer que a melhor  maneira de servir os nossos fins seria deixar de ver a verdade como um assunto profundo, como matéria de interesse filosófico, e de  ver  "verdadeiro"  como sendo um termo que merece  "análise". A "natureza da verdade " é um assunto que não proporciona qualquer proveito(... )".
        Rorty não pretende invocar argumentos que fundamentem a perspectiva da filosofia que apresenta. Assim como refutar as teses da teoria correspondencial da verdade perde sentido. Não há critérios prévios que permitam concretizar tal empreendimento. Do que se trata é de tornar  atraente um  outro jogo de linguagem, de proceder  a formulações diferentes,  a  redescrições   de conjuntos de  problemas  novos. Diz-nos: " A filosofia que é interessante raramente é um exame dos prós e dos contras de uma tese, regra geral, é implícita ou explicitamente uma competição entre um vocabulário instalado, que se tornou prejudicial e um novo vocabulário meio formado que vagamente promete grandes resultados".
        Poderemos, desde já,  entender  o alinhamento de Rorty face à filosofia da linguagem, que o aproxima, como ele assume, com a obra de Donald Davidson, mas também com o Wittgenstein das  Investigações Filosóficas. O nominalismo ao identificar a emergência da  consciência com a linguagem, abandona a ideia de uma "natureza intrínseca", solicitando, antes, a adopção da ideia de contingência, contingência da linguagem, da consciência, da racionalidade, da história, da humanidade.
        Se encararmos a linguagem como um "meio" de expressão ou de representação, então a linguagem surge-nos como um terceiro  elemento - entre o eu e a realidade - a quem compete revelar, explicitar crenças e desejos  que se encontram no mais fundo da natureza humana (a expressão do que há no eu), ou tornar inteligível a estrutura interna da realidade exterior ao homem (a representação do que é exterior ao eu). É uma concepção que pressupõe a existência de uma natureza humana, de uma substância  que,  para lá  das influências sociais e históricas, mantém um núcleo essencial  imune às transformações e, por isso, universal a todos os homens,  presente em  cada momento da história.
         Se, contudo, rompermos com considerações pré-linguísticas sobre a consciência ou a realidade, estamos aptos  a afirmar que todo o saber nunca é de ordem imediata, mas que se constrói no próprio jogo contingente das linguagens alternativas, que os seres humanos são eles mesmos redes de crenças e desejos que se manifestam discursivamente  no âmbito da multiplicidade dos diferentes contextos. Ou seja, não há natureza humana.
          A  associação da noção renovada de contingência com a noção de linguagem como instrumento e não já como  meio, permite que: " Ver a história da linguagem, e, portanto, das artes, das ciências e do sentido da moral como história da metáfora, é pôr de parte a imagem da mente humana ou das linguagens humanas, que se tornam cada vez mais adequadas aos fins para que Deus ou a natureza as conceberam, por exemplo, o de serem capazes de exprimir cada  vez mais significados ou de representar cada vez mais factos. A ideia de que a linguagem tem uma finalidade desaparece quando a ideia da linguagem como meio desaparece. Uma cultura que renunciasse a estas duas ideias seria o triunfo das tendências do pensamento  moderno que  começaram há dois séculos e que são comuns ao idealismo alemão, à poesia romântica e à política utópica ".
         O pragmatismo, no seu nominalismo, quer que reconheçamos que a verdade não está no mundo dos factos, mas é do domínio do dizer, um dizer sempre criativo enquanto construção humana de novas  metáforas. A história da linguagem (uma história contingente) é análoga à evolução das espécies : " As metáforas antigas estão constantemente a morrer e a tornarem-se literais e, assim, a servir de plataforma e de base para novas metáforas" .

 2  Solidariedade  versus  objectividade

        A contingência da linguagem, da individualidade, da história, há-de conduzir-nos à solidariedade, afastando-nos da objectividade. Uma solidariedade profunda que permita articular palavras - carregadas de sentido - como humanidade e desumanidade ?  "A  nossa  insistência  na contingência  e a  nossa consequente   oposição a  ideias como as  de " essência",  "natureza"  e  "fundamento"  tornam impossível retermos a noção de que algumas acções e atitudes são naturalmente  " desumanas ". É que esta insistência implica que aquilo que conta como sendo um ser humano decente seja relativo às circunstâncias históricas, seja  questão de um consenso passageiro quanto a saber que atitudes são normais e que práticas são justas ou injustas" .
         Solidariedade humana não como algo que escapa à história, algo comungado por todos os homens que partilham de uma "natureza", de uma "essência" universal e necessária - "uma natureza humana em si " -, mas solidariedade num outro sentido, aquele que convida cada um a reconhece-se e a reconhecer o outro como contingência - sem recurso a um  a priori que sempre nos escapa, porque simplesmente não existe -, contingência circunscrita a parâmetros contextuais que moldam e orientam a  vida a viver: o que somos, o que pensamos, o que dizemos, o que sentimos e desejamos. E perguntamos: o que há  "em si ", onde se situa o "em si "  para se tornar inteligível, para poder ser dito? A resposta só pode ser aquela que Rorty dá a propósito da definição, por exemplo, de um número, aleatoriamente o 17. O que podemos dizer  dele é o que dele dizemos numa rede de descrições e relações, o que significa que não há um mundo exterior à linguagem  - não podemos dizer o que é um objecto "em si "-, um mundo pré-linguístico que (ansiosamente) espera expressão e representação simbólicas. É a  ubiquidade da linguagem (rede a que não escapamos) segundo Rorty, e que parece querer apontar-nos duas coisas. A primeira, que não há nenhuma linguagem neutra para enunciar o mundo, a segunda, que a linguagem está  por toda a parte quando lidamos com a realidade, ou melhor, com as realidades.
        A contingência - corte com a transcendência e com a necessidade - é o corolário de um sentimento de solidariedade para com todos os outros seres humanos, sentimento que é uma obrigação moral. A relação resulta de uma partilha de crenças e de desejos que dão significado ao conjunto dos nossos comportamentos, atitudes e escolhas. Somos solidários na contingência desses valores  (podemos mesmo morrer por eles ), porque eles são  não "os"  valores, mas os nossos valores, enquanto configurados por um certo estilo de vida que, encarando-se como arbitrário e convencional, está sempre aberto a outros estilos de vida que possamos imaginar. A democracia é, de algum modo, a expresão dessa convencionalidade, traduzindo a  perspectiva de que a  cultura - política, artística, social - não se regula  por princípios  a-temporais,  por critérios a-históricos, mas que se explana na ideia de preferência, de opções alternativas historicamente contingentes. Assim: "Aquilo que os nossos futuros dirigentes hão-de ser não será determinado por quaisquer verdades necessárias sobre a natureza humana e a sua relação com a verdade e a justiça, mas sim por muitos pequenos factos contingentes".
         Daí a crítica a qualquer fundamentação teórica  (que sempre se pede ao filósofo) da política, seja a democracia ou não, porque não há fundamento que legitime um projecto social e histórico teleologicamente determinado.
        Insistindo ainda na compreensão da solidariedade, Rorty refere que parte da análise de Sellars em termos do que este designa por   "intenções - nós ". O  "nós" é recortado no conjunto formado por todos os seres humanos. Mas é sempre móvel, flutuante, ou seja, não há fronteiras rígidas entre  "nós" e  "eles", a não ser em momentos pontuais, locais, factuais. "O que está em causa (...) é que o nosso sentido de  solidariedade  é   mais forte quando se pensa naqueles relativamente aos quais se exprime solidariedade como se fossem  "um de nós", em que "nós" significa algo de mais pequeno e mais local do que a raça humana. É, por isso,  que "porque ela é um ser humano" é uma explicação fraca e não convincente de uma acção generosa " .
     Rorty tem necessidade de romper com um "nós" universalista, de pendor cristão ou kantiano, visando a rejeição de uma natureza humana a priori  que unisse todos os homens numa solidariedade resultante de cada um ser um de "nós", nós a humanidade.
        Resumindo, contra uma solidariedade universal opõe solidariedades relativas. O que se defende é que não há uma marca  essencial   que separe o humano do não humano, seja ele animal, vegetal ou máquina.O corte realiza-se no interior da própria ordem da humanidade onde se destacam várias comunidades de "nós" .Os sentimentos de solidariedade estão dependentes da relação imaginativa entre diferenças e semelhanças que surgem num vocabulário socialmente contingente que as revela.
        Citemos mais uma vez Rorty  para entendermos o alcance das suas afirmações: " Por outro lado, a minha posição não é incompatível com defender que tentemos alargar o nosso sentido do "nós" a pessoas em que anteriormente pensámos como sendo "eles". Esta posição característica de liberais, pessoas que têm mais medo de ser cruéis do que de qualquer outra coisa, não assenta em nada de mais profundo que as contingências históricas (...). Trat a-se de contingências que deram origem  ao desenvolvimento de vocabulários morais e políticos típicos das sociedades democráticas secularizadas do Ocidente.  À  medida  que  esse vocabulário foi gradualmente tornado não teológico e não filosófico, a "solidariedade humana "  emergiu como recurso retórico poderoso. Não é meu desejo diminuir o seu poder, mas apenas separá-lo daquilo que muitas vezes se pensou serem os seus  "pressupostos filosóficos". Na perspectiva que estou a apresentar, o progresso moral existe e esse progresso vai efectivamente na direcção de uma maior solidariedade humana. Mas tal solidariedade não é pensada como sendo o reconhecimento de um eu central, da essência humana em todos os seres humanos. É antes pensada como sendo a capacidade de ver cada vez mais diferenças tradicionais (de tribo, religião, raça, costumes, etc) como não importantes, em comparação com semelhanças no que respeita à dor e à humilhação  - a capacidade de pensar em pessoas muito diferentes de nós como estanto incluídas na esfera do  nós". Pensar o outro, "eles", com o respeito pelas suas crenças, valores, ideias, tão contingentes com as crenças, valores, ideias de "nós". E se esta pluralidade nos abre a "eles", criam-se então as condições pragmáticas para uma solidariedade possível e desejável na ordem de uma humanidade possível.
     Talvez possamos agora  compreender a noção de  etnocentrismo em Rorty.  O etnocentrismo pragmatista rompe com a concepção vulgar de etnocentrismo, no sentido em que ele não significa crença  num cultura que afirma a superioridade dos seus valores, por que verdadeiros e autênticos, relegando para a margem todos os outros  com  os quais  não se identifica. Não, o que se pretende dizer é, precisamente, o contrário. Há uma pluralidade de valores, de culturas, de crenças e desejos, e nada nos autoriza a fazer juízos de avaliação  que conduzam ao não reconhecimento do  outro, sem, contudo, cada cultura deixar de assumir os seus próprios   pontos de vista. Etnocentrismo na afirmação das diferenças culturais.
       A solidariedade é essa afirmação de pluralidade cultural  versus objectividade  (o etnocentrismo na sua versão corrente é  uma objectividade ilusória, parece não haver dúvidas) porque, é o que vimos tentando dizer, " (...) uma vez que a verdade é uma propriedade de frases, uma vez que as frases para existirem dependem de vocabulários e uma vez que os vocabulários são feitos por seres humanos, assim o são as verdades ". Se se "sugere que tentemos alcançar o ponto em que já não adoramos nada, em que não trataremos  nada  como quase  divindade, em que trataremos  tudo  - a nossa linguagem, a nossa consciência, a nossa comunidade - como produto do tempo e do acaso", como poderemos ainda defender a objectividade? Não podemos.
       Por último, o que é que a solidariedade nos pode reservar quando pensamos no futuro, se não há pensamento que não seja contextualizado? Ou de outro modo, que lugar há para a utopia? Rorty diz-nos que existe sempre a possibilidade de novas crenças, crenças melhoradas, novos factos e hipóteses.  Outras metáforas podem surgir que nos faça dizer e pensar. O fundamento é que nunca será epistemológico-metafísico, mas ético. Mesmo sem uma crença universal, a ética da esperança tem uma raiz prática  partilhada pelos homens em comunidade.
 
 3  Para além da filosofia

       A filosofia, segundo Rorty, deve abandonar o objectivo de justificar epistemologicamente o conhecimento, deve recusar-se a qualquer fundamentação formal e metodológica da actividade congitiva e da pretensão à verdade que com ela surge associada.
      Poderemos dizer que o discurso filosófico da contemporaneidade é atravessado por duas  abordagens - advenientes da  crítica kantiana -,  uma de corte epistemológico, outra de inspiração genealógica.
       A problemática da verdade e a sua articulação com a questão do conhecimento, constituem, assim, o cerne de duas orientações distintas, a que procura na ciência o modelo determinante de qualquer tipo de actividade cognoscitiva e a que pretende trabalhar a noção de verdade, não enquanto  mapeamento  ou  figuração do real  - " o espelho da natureza " -, mas na articulação  estreita com a crença, a partir dos resultados que produz na utilidade dos hábitos de acção.
       A distinção que assinalámos  enquadra-se naquela outra que Rorty refere quando afirma : " Os filósofos da corrente principal são aqueles a que chamarei  " sistemáticos ", e  os  da  periferia aqueles a  que chamarei "edificantes". Estes filósofos periféricos pragmáticos, são em primeiro lugar cépticos  quanto à filosofia sistemática, quanto a todo o projecto de comensuração universal. No nosso tempo, Dewey, Wittgenstein e Heidegger são os maiores pensadores edificantes, periféricos. Todos os três tornam tão difícil quanto possível que o seu pensamento seja encarado como a expressão de opiniões acerca de problemas filosóficos tradicionais, ou como a elaboração de propostas construtivas para a filosofia enquanto disciplina cooperativa e progressiva. Troçam da imagem clássica do homem, a imagem que contém a filosofia sistemática, a busca de comensuração universal num vocabulário final. Dedicam-se com afinco à posição  holista  de  que  as  palavras  retiram  o  seu  significado de outras palavras, em vez de os adquirirem em virtude do seu carácter representativo, e ao  corolário de que os vocabulários obtêm os seus privilégios mais dos homens que os utilizam do que da sua  transparência ao real ". Suficientemente claro este projecto de desvelar a ilusão espelhar da representação.
        Poderíamos, ainda,  acrescentar a essa lista de filósofos  periféricos Nietzsche e Foucault, ambos  avaliam  o  conhecimento  fora  da  tal "transparência ao real ", situando-o  antes numa matriz em que poder e saber se  correlacionam nesse jogo complexo que é a vida comunitária, e que a perspectiva genealógica  pretende revelar.
       A  "filosofia edificante", que Rorty reclama, ao pensar a verdade como crença, permite compreender melhor a redução da objectividade à solidariedade. O autor vê na actividade científica, concretamente nas ciências naturais, uma objectividade que é o melhor exemplo de uma solidariedade humana. E isto porquê? Porque a verdade aí  revelada não resulta da essência da mente, da realidade ou da linguagem, mas de um acordo que, recusando a evidência dos factos, se estabelece nos consensos entre equipas de investigadores que estão prontos à selecção de uma teoria  segundo  critérios, apta  a realizar o ajustamento (Goodman).
      É esta estratégia pragmatista que nos permite comprender o que ela nega e o que  afirma. Nega essa vocação de que a filosofia se reclama, um saber autónomo, necessário, radical, presente em todo o homem que começa a reflectir. Nega a pretensão de uma disciplina que se quer instituir como fundamento último e legitimador da cultura humana em substituição do papel desempenhado antes pela religião. Assim, é  Rorty  que nos diz : " Foi somente depois de Kant que a nossa moderna distinção entre  filosofia e ciência tomou lugar. Até que o poder das igrejas sobre a ciência e o saber das escolas fosse quebrado, as energias dos homens em quem actualmente pensamos como  "filósofos"  convergiam para a demarcação das suas actividades face à religião. Somente após ter sido ganha essa batalha podia surgir a questão da separação das ciências. A eventual demarcação da filosofia das ciências tornou-se possível através da noção de que o cerne da filosofia era a  "teoria do conhecimento", uma teoria que se distinguia das ciências porque era o seu  fundamento".
       Esse saber autónomo tem, pois, uma história, um contexto que o fez emergir, entre os séculos XVIII e XIX, no âmbito do idealismo alemão, e que depois se tornou  numa disciplina académica entre outras, mas  com objectivos de  fundacionar todas as restantes  práticas culturais.
      O que o pragmatismo afirma, então, é a necessidade de redescrever o papel e a função da filosofia na sociedade, situá-la   na  conversação da humanidade, numa perspectiva ironista, ou seja, na contingência dos vários discursos disponíveis  que se oferecem  à mutabilidade da história.  "Se não virmos o conhecer como a posse de uma essência, a ser descrita  por cientistas ou filósofos, mas antes como um direito, pelos padrões correntes, a acreditar, estaremos então no bom caminho para ver a conversação como o contexto último em que o conhecimento deve ser compreendido. O nosso foco passa da relação entre os seres humanos e os objectos do seu inquérito para a relação entre padrões alternativos de justificação, e daí para as efectivas alternativas nesses padrões que formam a história intelectual".
       A filosofia deve, assim, proceder à sua transformação,  uma mudança radical, assumindo-se mais além numa  pós-filosofia, não reivindicando um papel de condutora da cultura, mas perdendo esse carácter de autonomia que lhe confere a solenidade própria de quem se afasta para dizer ao mundo o que  é aceitável ou não, em nome de uma racionalidade objectivamente verdadeira.
       Pelo contrário, o que se pede à filosofia é que se envolva nos problemas, que formule novas problemáticas e as equacione de outro modo. Pede-se-lhe que participe numa conversação com a ciência, a arte, a literatura, a política, nos grandes debates que se colocam hoje à humanidade. Deve alargar a sua actividade, perdendo  especificidade e tornando-se mais livre, mais edificante, no sentido da des-naturalização de  vocabulários  (uma função terapêutica, como em Wittgenstein) que já não são eficazes,  gastaram-se na sua terminologia obsessiva. Pede-se-lhe que contribua para a organização de outros discursos, enquanto instrumentos proporcionadores de  algo que não poderia ter sido pensado anteriormente. A via contemplativa, que foi o trajecto da  "filosofia sistemática", pode agora ceder  o seu lugar à criação, a uma  "humanidade poética".
                                     
 
CONCLUSÃO

        Procurámos trazer a este trabalho alguns aspectos que nos pareceram mais pertinentes da obra de um autor  que é considerado, por quase todos, como um dos filósofos mais interessantes  do pensamento contemporâneo. É evidente que muitas questões ficaram por referir, analisar e problematizar, sobretudo porque estamos perante alguém que já produziu muito e o que produziu nunca deixou de causar polémica, tanto do lado da tradição anglo-americana como da continental.
      Gostaríamos, para terminar, de assinalar as conferências que Rorty realizou no Collège International de Philosophie (reunidas numa edição com o título " L´Espoir au lieu du Savoir "), onde sustentou que a solidariedade, a esperança e o futuro são preferíveis à objectividade e ao saber. Ora uma filosofia do futuro transporta consigo  um corte com o passado, uma ruptura com a metafísica ocidental. E o curioso  é ver no pensamento de Rorty essa associação entre o futuro e a América, também ela a nação que sempre encontrou na ideia de futuro as coordenadas que definem a sua idiossincrasia. Tal não significa  defender uma posição conservadora face à sociedade americana do presente - que nos dá uma imagem actual bastante pobre, como afirma -, mas que ela é, mais do que a pátria do pragmatismo, a sua metáfora, enquanto nos faculta pensar que será a imaginação (a abertura sempre renovada do que podemos pensar, dizer, sentir) o novo motor da evolução cultural dos povos. O futuro é algo que pertence à criação dos homens e que se inscreve no pano de fundo das contingências e dos acasos que torna a vida o trajecto de todas as possibilidades.
 
 
 
Verão/1999
 
 
 
(as minhas desculpas pela formatação deficiente, ou ausência dela, mas ultrapassa a minha vontade  - ou a de Rorty, com todo o respeito)
 
 
 
                                      BIBLIOGRAFIA

BOGOMOLOV, A. S.,  "  A Filosofia Americana no Século XX " , trad. brasileira  de Paulo Bezerra,  Rio de  Janeiro : Civilização Brasileira, 1979.
CARRILHO, M. M.ª ,  "Aventuras da Interpretação " , Lisboa : Ed. Presença, 1995.
CARRILHO, M. M.ª ,  " O que é a Filosofia " , Lisboa : Difusão Cultural, 1994.
COMETTI, J. P. ,  " Filosofia sem Privilégios " , trad. port. de Fernando Martinho,  Porto : Edições Asa, 1995.
GOODMAN, N.,  " Modos de Fazer Mundos " , trad. port. de António Duarte,  Porto : Edições Asa, 1995.
MURPHY, J. ,  " O  Pragmatismo " , trad. port. de Jorge Costa, Porto : Edições Asa, 1993.
RORTY, R. ,  " A Filosofia e o Espelho da Natureza " , trad. port. de  Jorge Pires, Lisboa :  Publicações Dom Quixote, 1988.
RORTY , R.,  " Contingência, Ironia e Solidariedade " , trad. port. de Nuno Ferreira da Fonseca, Lisboa : Ed. Presença, 1994.
RORTY , R ,  " L´Espoir au lieu do Savoir  - Introduction au Pragmatisme ", Paris : Albin Michel, 1995.
WITTGENSTEIN, L,  Tratado Lógico-Filosófico e Investigações Filosóficas, trad. port. de M. S. Lourenço, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987.
WEST , C.,  " Nietzsche e a Filosofia Americana Pós - Moderna " , in  Crítica, nº 9, trad. port. de Jorge Costa, Lisboa : Ed. Terramar, 1992.
 
M.CARRILHO., Aventuras da Interpretação, Lisboa: Editorial Presença, 1995, p.19.
Ibid.,  p. 21.
R.  RORTY, A Filosofia e o Espelho da Natureza, tr. port., Lisboa: Publicações D.Quixote, 1988, p.16.
R. RORTY, A Filosofia e o Espelho da Natureza, op. cit., p. 18.
R. RORTY,  "Introdução ", in  John Murphy,  O Pragmatismo, tr. port., Porto: Edições Asa, p. 13.
Cf. J. MURPHY, O Pragmatismo, op. cit. , pp. 20-22.
N.GOODMAN,  Modos de Fazer Mundos, tr. port., Porto: Edições Asa, 1995, p.51.
R.RORTY,A Filosofia e o Espelho da Natureza,op.cit., p.132.
N. GOODMAN, Modos de Fazer Mundos, op. cit., p. 43.
R.  RORTY,  A Filosofia e o Espelho da Natureza, op. cit. , p. 20 .
R. RORTY,  Contingência, Ironia  e Solidariedade, tr. port., Lisboa: Editorial Presença, 1992, p. 29.
Ibid., p.30.
Ibid, p. 38.
Ibid., p. 39.
Ibid., p.235.
Ibid., p.234.
Ibid., p.328.
Ibid ., p. 239.
Ibid. , p. 44.
Ibid.,  pp. 45-46.
R. RORTY, A Filosofia e o Espelho da Natureza, op. cit., p.285.
Ibid., pp.109-110.
Ibid., p.300.

domingo, 29 de setembro de 2013

O Silêncio

O silêncio do silêncio no ar incomoda tanto…é um barulho que não se ouve, mas dói tanto. Grita! Grita! Grita! Não consegues gritar? O silêncio abafa o teu próprio grito? Grita mais alto que o silêncio, há – de se impor a tua força, o teu grito furioso, a tua alma que caí como uma nódoa que não saí. Mas continua a gritar, levanta – te, grita, explode, ouve, fala, destrói, volta a construir, destrói, pisa, salta, corre e, sobretudo, respeita o teu grito. Silêncio dos culpados, que desapareça antes que se faça inocente e comece a chorar do seu próprio abafo. Ouve! Estás a ouvir? É a conformação a beijar o silêncio, ouve – se o copular e vê – se o romper da nossa liberdade. Não consigo ouvir, não consigo ouvir. O silêncio censura – me, ai que a minha honra não me deixa superiorizá – lo. Deixa – me, deixa – me! Ó silêncio, que vales tu? Valo a tua honra e a tua dignidade. Com razão respondes silêncio. Mas eu quero gritar, gritar e chorar, quero relembrar tudo e valorizar a voz do meu coração! Ó silêncio, por favor, deixa – me ser melhor que tu, visto que, és o melhor dos ingratos e dos egoístas da mente. Ó silêncio, não fiques em silêncio comigo! Quanta dor provocas, acentuas a minha ansiedade que derruba o meu sono e faz trazer tudo à lembrança. Não! Não! Prevalecerá a minha angústia, os seres humanos reprovarão a minha fraqueza, condenarão a minha inexperiência e perspicácia, contudo dar – lhes – ei o meu silêncio que é o teu silêncio. E agora já derrubas o silêncio, ó silêncio? Permanece estático, não silencieis mais…acaba comigo de uma vez por todas. Não me amas? Claro, que amo. Não é isso! Então? Gostas de outro? Talvez. Ai quanto esse talvez é silencioso numa só palavra, cala – te, ó silêncio! Quando procuras me responder, fazes pior…quão ingrato, quão minucioso és! Preparas – me para o precipício e empurras – me.

                Eu abro a janela e consigo ouvir a natureza, é aí que o maldito e impuro, cruel, desleal e traidor silêncio desaparece da minha mente. Mas sei que ele vai me atacar quando dormir de novo. Contudo, eu vou gritar e conjugarei toda a minha dor num frasco de ar que há – de arrebentar…há – de arrebentar como uma nota agressiva que se esconde por de trás de uma calma na Sinfonia de Beethoven. Enquanto isso, vou esperar por alguém que me calque ainda mais e peça desculpa pelo seu silêncio. Desaparecei, ó infortúnios! Não preciso da vossa pena nem do vosso reconhecimento. Cada momento que respiro, procuro respirar menos, talvez consiga sentir mais aquilo que não quero sentir de verdade. Talvez! Gostas de outro, ó silêncio? Talvez, talvez, talvez, talvez, talvez, talvez, talvez, talvez, talvez, talvez, talvez, talvez, talvez, sim, sim, sim, sim, sim, sim, sim, sim, sim, tenho a certeza, tenho a certeza, tenho a certeza. Sei que vou morrer no sono, todavia vou continuar a gritar, pois sei que ninguém me vai ouvir, mas no fundo, é um grito silencioso que mata o meu próprio silêncio.    

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Almas Mortas

São percevejos, são crostas, são lesmas que se arrastam. É um são que somos, um somos que, por vezes, não o é. São Tchitchicov’s( alusão à personagem principal de “Almas Mortas”, de Nikilai Gógol), são o raio que os parta, são tudo, são nada, ou seja, um tudo de nada. Morrer? Nunca. Viver? Só com esse fundo, longe dessas almas mortas, longe do escrutínio, tapado pela ilusão que é a vida. Só assim, só assim me comprometo a viver. São palavras, são desabafos…são receios de alguém que vive escondido nas margens e dor de não se integrar no interesse e no altar da sociedade. Mas, no fundo, quem não as tem? Todos vivem nessa corda, todos querem fugir dela, mas todos sabem que o melhor é estar amarrado a ela; lucros e distinções se folgam desse apertar que chega a rasgar aquilo que é o mais humano, ou perto disso, ou mais longe disso, isso é o querer fugir à natureza humana, natureza que só posso querer negá – la e achá – la repugnante. Tão escabrosa como a fundamentação ariana.
São percevejos, são crostas…são lesmas que se querem arrastar. O meu pessimismo ultrapassa Jonathan Litrell, range com os dentes e reza um Te Deum. Rasga os céus e sopra os cantos mais fúnebres e sebentos, canta o luar a Zeus e seduz Vénus com um olhar crispante e cintilante de jóias que nascem nos mais procurados lugares. E nesse mesmo momento, nesse mesmo encontro, ouve – se um som, tetatetatttttetatanananananannntetatatnanante, Fur Elise que se envolve naquilo que dizemos ser o som. Som que faz renascer a minha alma morta, morta pela sociedade e semi – enterrada por quem se mostra generoso. Som maravilhoso, empedernido, enternecedor, aconchegado, fugaz, fúnebre, lento e rápido, contagiante.

O som acaba, o mundo desmorona, Dostoiéski tosse na campa com o pesar da sociedade, Nietzsche afirma acreditar ver Deus, Leibniz diz ser ateu, Voltaire torna – se um cândido e goza dos sapientes, Shopenhauer diz ser gay, Franz Kafka torna – se político, etc,etc, etc. O mundo vira – se e fica de pernas para o ar. Porquê? Porque o som terminou, agora não há bem que torne esta sociedade lógica e consciente. Agora sim, agora temos uma natureza humana. 

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

                                                                  PIANO


Não sabia nadar, mas também não sabia muitas outras coisas, não sabia tocar qualquer instrumento musical. Piano, por exemplo. Tinha dificuldade em preencher um boletim com os seus dados pessoais. Melhor, deixaria o boletim em branco. Mas atirou-se ao mar. E, mais tarde, tocou piano. E, mais tarde ainda, reagiu a “James” como possibilidade de ser “James”. Entretanto, tudo começou na praia e era Outono e a neblina escondia o mundo. Vestido de preto, rigorosamente de preto, calças, casaco, camisa, gravata, sapatos, meias, rigorosamente de preto. Distinto, elegante, esguio, talvez belo. Não sabia nadar e mergulhou ao encontro da ondulação. Por momentos, sentiu o risco de entrar na morte, é sempre possível entrar na morte sem glória. Mesmo vestido, o frio atingiu-o como uma vertigem. Soube escapar da voragem sem explicação e adormeceu estendido no areal. Soube escapar, ou escapou, inevitavelmente. Acordou sob um tecto branco, o tecto branco de uma casa branca, paredes imaculadas nos limites de um espaço ocupado por uma poltrona branca. E um piano. E o seu corpo vestido de negro, o corpo deitado. Pousado na superfície ontológica de um pano branco. Nada mais. Ninguém mais. O som do mar próximo, a penumbra projectando talvez sombras pelos cantos da sala. Assim. Agora era a música que saía das teclas sobre pressão dos dedos ainda húmidos, frios. A noite se tornou constante e envolvente. Lembrou-se de alguns nomes possíveis, “James” foi o que lhe provocou um riso incontido, uma melancolia áspera. Sempre a mesma brancura, cada vez mais intermitente. Não saber tocar piano era apenas esquecimento. Como não saber nadar, como não saber muitas outras coisas. Por exemplo, acordar numa sala com um piano depois de adormecer entontecido na solidão de um areal anónimo. O brilho do mar ao fundo, o fundo sem regresso. Desligaram as máquinas, uma forma subtil de anunciar a morte do paciente depois de algumas horas em coma. James morreu!

Carlos Frazão

In “Contos em 8 Milímetros”

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE " NASCIMENTO DA TRAGÉDIA", F. NIETZSCHE
                                                                 

1.A filosofia de Nietzsche ergue-se, nas suas pretensões mais profundas, como uma filosofia que lida ou sabe lidar com "momentos de antinomia", num sentido diferente das antinomias Kantianas.
- A obra de Nietzsche é, antes de mais, uma obra profundamente crítica, em relação quer ao plano teórico quer ao plano moral, ou seja, uma crítica dos valores, do ideal e da verdade. Propõe um pensamento antimoral, um pensamento artístico, enquanto reconhecimento de que não é desvendamento do ser, mas desconstrução permanente, melhor, re-criação conforme a própria criatividade dos fluxos viventes. Pensamento que é também crítica do saber, na qual a ciência é examinada à luz da possibilidade artística. E é, aliás, neste terreno do saber, que ele enuncia os grandes temas da sua obra: Vontade de Poder, Eterno Retorno, Niilismo, Super-Homem. O pensamento não é um exercício marcado pela tradição noética, diríamos de uma teorização obsessiva, como o que caracteriza a filosofia ocidental, mas uma atitude, um Pathos, uma prática experiencial, um estado que subentende emoção, sofrimento, tragédia. O que está em causa é uma dimensão de outra ordem, a existencial. Pathos e pensamento são indissociáveis.
 - Nietzsche integra na filosofia dois meios de expressão: o aforismo e o poema. Estas formas não são opções arbitrárias, mas reflectem uma concepção nova da filosofia, uma perspectiva inovadora do pensador e do pensamento. “ Ao ideal do conhecimento, à descoberta do verdadeiro, Nietzsche substitui a interpretação e a avaliação. Uma fixa o sentido, sempre parcial e fragmentário, de um fenómeno; a outra determina o valor hierárquico dos sentidos e totaliza os fragmentos, sem atenuar nem suprimir a sua pluralidade. O aforismo, precisamente, é ao mesmo tempo a arte de interpretar e a coisa a interpretar; o poema é ao mesmo tempo a arte de avaliar e a coisa a avaliar. O intérprete é o fisiólogo ou o médico, aquele que considera os fenómenos como sintomas e fala por aforismo. O avaliador é o artista, que considera e cria perspectivas, que fala pelo poema. O filósofo do futuro é artista e médico – numa palavra, legislador” (G. Deleuze)
 - Este estilo, esta postura de filósofo, decorre de uma visão crítica, poderosa e original da filosofia tradicional e da História na humanidade e o seu contrário. Da existência, múltipla e incomensurável em categorias éticas ou epistemológicas. O pensamento do filósofo alemão é indeterminado, indeterminável em estreitas linhas condicionadores de uma legibilidade que se queira apreender facilmente. Para Nietzsche o real é plurívoco, inesgotavelmente aberto e criativo. "É por esta razão que a linguagem unívoca da ciência e da lógica, dos seus conceitos e categorias intelectuais, não é conveniente para descrever a exuberância da realidade; apenas uma linguagem metafórica, mais conotativa que denotativa, exigindo a interpretação criativa, é capaz de exprimir a multiplicidade do mundo." De facto, a linguagem é simbólica e profundamente musical, inapreensível (Schopenhauer). "Os conceitos não são mais que antigas metáforas, usadas, gastas e mortas. É por ser metáfora e analogia que a linguagem pode introduzir unidade no caos dos fenómenos, reunindo o diverso, ordenando o interminável fluir do todo. A analogia permite aproximar e reagrupar as coisas que não são idênticas". Fixadas numa tradição "ontológica", estes reagrupamentos tornam-se categorias, conceitos ou essências, isto é, "espelho da natureza" (Rorty). O erro consiste em tomar estas conceptualizações como verdade e realidade, quando não passam de interpretações no seio de uma diversidade de leituras analógicas possíveis. E se esta sintomatologia revela o quadro cromático da linguagem, então a metalinguagem, a crítica, seguirá o mesmo caminho. Eis os textos aforísticos como prova maior dessa intenção.
 - Para o artista, o símbolo cromático é uma imagem substitutiva que lhe entra no espírito, em vez do conceito; os conceitos são termos lógicos que territoralizam o real, tornando-o unívoco.

- O saber acerca da essência das coisas é impossível. Não existe real em si, nem verdade absoluta, nem um sentido único e fundamental que esgotaria os significados múltiplos do ser. O que se identifica como real, realidade, verdade, depende da perspectiva escolhida. Ao abordarmos o real colocamo-nos sempre segundo um determinado ponto de vista, uma determinada perspectiva, perspectiva que vai condicionar a nossa visão sobre esse real que se quer apreender (apropriar). - Não há possibilidade de escapar a este perspectivismo, ou seja, não há nenhuma possibilidade de captar o "nomeno". Como a opção de perspectiva depende dos valores – interesses, objectivos – privilegiados pelo sujeito que interpreta, toda a dimensão apropriativa – toda a leitura do que é o real – é axiológica, orientada pelos valores, fundacionada nos valores. Nenhuma perspectiva, repita-se, é puramente lógica, isto é, neutra, objectiva, absoluta, independente da valorização subjectiva. Há uma distância intransponível entre os instrumentos que o sujeito possui para conhecer e o ser das coisas ou a sua identidade. Talvez se possa até dizer que o ser é a sua perspectiva. Sim, deve-se dizer.
- A verdade é inscrita nos dispositivos culturais porque ela é útil para a sociedade e não porque corresponda ao conhecimento das coisas (o Pragmatismo realça esta dimensão do "verdadeiro)." A linguagem como instrumento privilegiado do conhecimento é essencialmente uma estrutura de dissimulação/apropriação e não uma espécie de reprodução da realidade fixada
- A ciência (gaia ciência) alimenta a pretensão ilusória de escapar ao perspectivismo, produzindo, na sua imaginação totalizante, uma descrição adequada, verdadeira – como um espelho – do real (o tal espelho, a tal ilusão espelhar de que fala Rorty). Ela está associada à lógica, que visa assinalar identidades absolutamente estáveis, não afectadas pelo incessante e caótico devir dos fenómenos, que aparecem e desaparecem ou se modificam sem cessar. É uma ilusão repetível, ilusão no cerne do seu próprio perspectivismo incontornável.
-"Contudo, é importante referi-lo, Nietzsche assume uma posição ambivalente relativamente à ciência da sua época. Reconhece, por um lado, que esta modalidade de conhecimento permite liberdade de interpelação e problematização, recusa de preconceitos e dogmas, interesse efectivo pelas questões concretas que afectam o mundo." Mas, por outro lado, censura a ciência pela sua pretensão ontoteleoteológica de uma Saber Absoluto, Verdadeiro e Definitivo, incapaz de reconhecer que todo o conhecimento é um processo de “fazer mundos”, utilizando agora expressão de L. Goodman. Por isso, a arte é superior à ciência e esta deve fazer do homem um artista, num sentido inaudito.
- A arte não é da ordem da verdade, mas da criação. O que prevaleceu na cultura Oc. não foi o querer, o sim afirmativo da criação autêntica, mas a obsessão pelo saber, não foi o instinto mas a busca permanente pela racionalização, não foram as forças da vida mas as forças da morte com todos os seus substitutos (Deus, moral, religião, razão…), não foi a alegria mas o sofrimento, não foi a força mas a fraqueza. O que imperou e atravessou esta cultura foi o reinado das verdades ilusórias. O que é preciso é regressar ao sentido profundo da vida, à sua manifestação sem apreciações morais, regressar aos instintos últimos que actuam pelo fluido cósmico da vida. A arte e a verdade são inconciliáveis, esta é do domínio do passado com os seus ídolos (Deus, Razão, Moral…), a arte é de outro domínio, o do futuro. “O Nascimento da Tragédia professa a fé na arte, sob o fundo de uma outra crença: a saber, que não é possível viver com a verdade; que a vontade de verdade é já um sintoma de degenerescência”. (Nietzsche)

2- "Uma das antíteses mais significativas é a do: Apolíneo  versus  Dionisíaco.
Da fusão das duas forças, procede a tragédia ática. Este é o tema de “O Nascimento da Tragédia”.
- É nesta obra que Nietzsche exprime a antinomia entre a razão e a vida. Apolo, Diónisos e Sócrates
- Apolo e Diónisos são duas forças primordiais, particularmente actuantes na cultura grega clássica. E o seu significado não é apenas cultural, é mais profundo, revela-se como algo que atinge aquilo que a própria realidade é.
- A obra de Nietzsche desenvolve-se em torno do conceito de arte, sendo esta produto de dois espíritos, o apolíneo e o dionisíaco.
- Forças opostas, contraditórias – mas, simultaneamente, surgem como pólos complementares da criação estética. O dionisíaco deve poder manifestar-se apolineamente.
- O espírito dionisíaco e o espírito apolíneo apresentam-se como vontades que emergem da natureza – essência dionisíaca e aparência apolínea. “ O génio apolíneo e o seu contrário, o génio dionisíaco, surgem como forças artísticas que brotam do seio da própria natureza, sem mediação do artista humano, e na presença das quais as pulsões artísticas da natureza encontram imediata e directamente a sua satisfação: por um lado, sob a forma de um mundo imaginal do sonho, cuja perfeição não depende de modo algum do nível intelectual ou da formação artística do indivíduo; e, por outro lado, sob a forma de uma realidade cheia de embriaguês que não leva em conta o indivíduo e, pelo contrário, procura até o seu apagamento, envolvendo-o num sentimento místico de unidade”.(N)
 APOLO: é o deus da forma plástica, simboliza a luminosidade do ser, é o deus da aparência, da ilusão, exprime-se na individualidade das figuras bem delimitadas. Do espírito apolíneo provêm as artes plásticas. Imagem da racionalidade, orientada seja para os valores da verdade seja para o que se veio a qualificar de princípios morais. Apolo como deus da forma, da individuação, da calma sabedoria; a ilusão apolínea oculta a verdadeira natureza do homem e do mundo, sob o véu de Maya.
 DIÓNISOS: representa a dissolução da individualidade, a desmesura e a superabundância. Representa o deus do prazer, é a energia universal, o ser nas suas profundezas, ao mesmo tempo violento e escondido. Do dionisíaco procede a “arte sem formas ou musical”. Irrompe sempre como uma consciência do seu contrário apolíneo, interpretando este como acontecimento de superfície, até mesmo como aquilo que nunca se liberta totalmente da categoria do convencional."

- "(...)A evolução da arte resulta do duplo carácter do espírito apolíneo e do espírito dionisíaco. Estes devem ser pensados como tendências ou impulsos artísticos antitéticos. A natureza de qualquer arte, em qualquer época, varia conforme o impulso ou tendência que é operativo. A arte, segundo Nietzsche, nasce de um impulso constitutivo da natureza e não do indivíduo. Os espíritos apolíneo e dionisíaco correspondem a forças artísticas que, como já o dissemos, brotam no seio da própria natureza. A diferença entre esses impulsos determina a variedade das espécies artísticas, divididas em três grandes grupos: as artes plásticas (género puramente formal), a música (sem forma) e a tragédia (arte superior por fundir os dois princípios). As modificações históricas sofridas pelos diferentes géneros decorrem igualmente do modo como os dos espíritos se manifestam. Só a interferência de um terceiro processo, o socrático, com o seu optimismo racionalista, provocará a morte da tragédia, cujo nascimento e renascimento constituem o eixo das preocupações nietzscheanas nesta obra.
-Um dos argumentos mais pertinentes exposto na obra de Nietzsche desdobra-se em alguns pontos essenciais:
I) A nossa cultura moderna foi dominada por uma espécie de socratismo estético, cuja matriz reside nas tragédias de Eurípedes;
II) A tensão entre os dois princípios contrários e vitais foi obliterada com o triunfo do racionalismo elaborado pela filosofia intelectualista de Sócrates e pelas novas concepções de Eurípedes.
III) Triunfou uma forma estética inadequada que visa tornar objectivo o que é da ordem do irrepresentável, pretende-se racionalizar uma ordem que se move por princípios que não são apreensíveis segundo as categorias da interpelação teórica do real. “Sócrates estabelece o cânone do pensar correcto que busca a verdade segundo as regras da lógica. Eurípedes é, no essencial, um artista socrático e nas suas tragédias o apolíneo já não consegue ser mediação, exibição simbólica do dionisíaco”. Eurípedes introduziu as modificações necessárias para operar a mudança para o cânone da inteligibilidade, modificações a nível da linguagem, dos caracteres, da estrutura dramática, da música do coro. A oposição inequívoca Ésquilo-Eurípedes é desenvolvida por Nietzsche como essencial para sublinhar que:
 “Não é a estrutura euripidiana, que incorpora elementos da lógica e do racionalismo socráticos, que o mito trágico exprime o verdadeiro ser”. Este encontra a sua autenticidade nas tragédias de Esquilo, onde a forma trágica resulta do desenvolvimento directo do coro e do ditirambo ou da poesia e música populares. Essa forma já é o meio adequado para a representação da ordem primordial, atitude que o conceito e a argumentação lógica (socratismo) irão anular.
- A outra linguagem, a alternativa radical à linguagem conceptual, encontra-a Nietzsche na música, pelo menos num determinado tipo de música. Daí que a mais original tragédia grega tenha a sua origem na música que Nietzsche agora vê actualizável na ópera wagneriana”. O núcleo destas teses apenas se pode compreender considerando a defesa de um pressuposto marcadamente Kantiano: “ o sujeito, seja ele entendido como sujeito cognoscente seja como sujeito estético, está limitado ao mundo fenoménico, assim como o artista apolíneo possui efectivamente essa limitação. Este apenas compreende aquilo que ele próprio produz, segundo as suas características racionais. Também nas formas trágicas da estética dionisíaca, o Uno Primordial nunca pertence à verdade, ou seja, nunca é objecto de um conhecimento verdadeiro”.

3- Considerações breves ao modo de ditirambo, antes de terminar com uma referência à música e ao riso.
- A música parece encerrar em si algo que pode escapar à tentativa conceptual de estabelecer uma lógica limitadora do inaudito. Contudo, a tragédia perdeu-se. Talvez Nietzsche, mesmo assim, tivesse pensado que não era uma perda fatal, haveria ainda um futuro para o riso. “E vós, meus irmãos, também acreditais na lei do fluxo e do refluxo? Também nós teremos a nossa hora” (N)
                                           A NÁUSEA CONTRA A ESPERANÇA


No fundo, o que vivemos não é um desencanto consciente, mas um encanto inconsciente. Permanecemos na superficialidade do real, ir mais longe tornou-se impossível. Talvez já nem saibamos reconhecer as aparências, elas são demasiado usuais e inebriantes. Tudo se joga vertiginosamente, e é mais cómodo – ou inevitável - ficar pelas regras que tornamos inexoráveis para fundar a esperança. Mas esta é apenas mais uma regra de um jogo que tornou improvável a consciência do desencanto. Nunca como hoje a esperança se tornou tão fútil e inútil, por um lado, e eficaz e produtiva numa estrutura de alienação. A linguagem, os conceitos, os modelos de exibição, os valores sem contrates, as forças activas que actuam desde o centro às margens deste dispositivo de poder, criam mecanismos de ilusão, sistemas de imagens invertidas, discursos de domínio que visam moldar a máquina dos corpos, dos desejos, das construções sociais. A esperança não existe - talvez nunca tenha existido -, por isso o discurso político lhe dá demasiada ênfase, nenhum conteúdo concreto lhe pode ser exigido. A questão é “o que fazer?” Parece que toda a denúncia está inscrita nos dispositivos de poder para impedir o seu impacto. Há mesmo apelos à indignação, à denúncia, que não são mais que formas de atenuação das rupturas. O que fazer? A náusea reúne em si duas vertentes: repulsão e ânsia. Poderá estar aqui alguma força não explícita de rompimento num cenário de crise ontológica contemporânea? Uma espécie de niilismo inicial militante e eufórico contra toda a vacuidade da esperança?

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Du iu sepique inglixe?


O perfume de Maria Joana II

O cheiro das pitas, não demasiado forte, entranha-se a gosto nas gentes dos campos, pouco lhes importa o que as outras pessoas dizem, sim, a estes é verdade, nos snobes da cidade levam até a exaustão esta máxima, no entanto, ou porque os cheiros importam, ou as vontades, acabam sempre por se importar, seja de forma mais direta e visível com os mais sensíveis a chorar em público ou a barafustar com os amigos, seja de maneira mais discreta em casa, também a chorar, mas sem ninguém saber, pois homem não chora, mulher também não, isso é coisa de fracos, mas de fracos também fica a sua atitude com os outros, eu, chorar? Isso é coisa de estúpidos, não sabe ele que a namorada já contou ao amigo e este a outro amigo e este aos colegas e estes aos seus amigos que chorou quando deitou sangue do cu das hemorroidas e quando a tia-avó ficou acamada. Devaneios, nada mais.
                Maria Joana, sempre muito trabalhadora, foi aos correios levantar o subsídio a que tinha direito, não que vivesse mal, mas arranjou uma cunha lá na junta e conseguiu um dinheirito extra, ao menos dá para os cigarros, dizia ela, e, já cansadita daquele trajeto e da espera prolongada em filas da segurança social, foi tratar da horta, cheirou-lhe a esturro, ou outro cheiro mais forte, não, merda é das pitas, mas é parecido. Um carrito, com um megafone colado ao teto, um carrito foleiro, nada de mais, lembrou-se que era altura de eleições, lembrou-se também que fora das últimas a nascer de António e Helena, a sexta, numa gravidez de altíssimo risco, no tempo dos seus pais é que não havia barulho com isto, era tudo silencioso, às escuras se fazia tudo, mas era tudo claro, agora, paradoxalmente, às claras se fazia tudo, mas era tudo muito escuro, porco até, como o cheiro. Então, enquanto trocava mensagens com uma amiga, pois já tinha tratado da horta, o marido que fosse tratar dos animais, parasita dum raio, não faz nada, fez uma comparação analógica entre política e opções sexuais, sim, ora veja-se, pensava ela, há os da esquerda moderada, chamada  esquerda de centro, e os da direita moderada, chamada mais direita de centro, estes são como os heterossexuais, fazem a sua vidinha, ficam pelo sexo vaginal, às vezes mais ousados vão ao sexo oral, mudando, assim da extrema esquerda para uma esquerda mais moderada ou inverso, por vezes, mais ousados, acabam por enrabar toda a gente, mas isto é outra história e só em crise, por sua vez, os bissexuais, estes eram os da extrema esquerda, pois não sabiam se eram leninistas ou estalinistas, ah Lenine é que implementou o comunismo na Rússia, pouco tempo esteve lá, mas foi bom, Estaline é que foi o grande salvador, se não fosse ele Hitler ainda nos estava a queimar, e os planos quinquenais, boa pomada, mas também matou tanta gente, mais que o Hitler, pois é o que te ia dizer que é por isso que sou leninista, mas olha que foi graças a ele que se fala de comunismo, pois, não deixas acabar, também sou estalinista, mas fique-se aqui pela bissexualidade, depois há os homossexuais, esses, no fundo, são os que saem do partido da extrema esquerda por “diversidade de ideias”, que treta, no fundo, fodem-se todos uns aos outros, aos do seu género, como tal, são homossexuais, mas não se fique por aqui, também há aquele que não sabem se são heterossexuais ou se são homossexuais, ou seja, não têm partido, pois também não ligam muito a ideologias, o que interessa é o poder, recorde-se ainda outro tipo, os travestis, estes são muito frequentes, são da direita, por exemplo, ou da esquerda, e, curiosamente, mudam para o outro lado, para a direita no caso de serem da esquerda, para a esquerda no caso de serem da direita. Então aquilo já lhe cheirava a outra coisa, era a líquidos e coisas do sexo.
                - Bolaño, traz salsa para se pôr tempero – gritava Maria Joana.
                - Levo tomates também?
                - Estão maduros?
                - Sim, alguns.
                - Traz esses. E o cheiro?

                - É daquele que tu gostas. Bem lavadinhos fica um mimo.

domingo, 22 de setembro de 2013

Mais tetas pró Cavaco


A arma de Bruna

Barulho. Ruídos sobre ruídos, pedinchões, vozes fortes de baixo travestis, lixo, poeira voadora e provocadora de espirros, crianças a ser amamentadas pelas suas mães, ciganas, com saia largas, algumas azuis, outras com flores rosa em fundo branco, camisolas curtas largas azuis, quase todas azuis, cabelos pretos oleosos com ganchos grandes a prender o cabelo, chinelos de plástico transparentes, com os pais ao lado, todos vestidos de negro, sapatos pretos, chapéu da mesma cor, a meia branca nos mais velhos despreocupados, preta nos mais novos, com os avós ao lado, mais gordos, com a mesma roupa dos seus descendentes. Caras conhecidas que se embebedaram na noite anterior à grande e acabaram por correr nus pela avenida com uma garrafa de champagne e, muitos deles, apanhados a urinar para os carros da polícia. Este era o ambiente da esquadra, no Porto, onde Bruna trabalhava. 
                A vida de Bruna nem sempre era rodeada da agitação constante normalmente rotulada na vida da luta contra o crime. Chegou a casa, foi buscar umas snack’s, tratou de ir buscar duas pedras ao congelador para juntar ao uísque – noutro dia, o barman aconselhou a não beber nunca com mais de duas pedras, caso contrário estragaria, por completo, sabor caraterístico do uísque -, fritou umas batatas fritas com óleo, juntou no outro disco uns bifes, temperou com limão, com salsa e sal, e depois usou azeite para o fritar. Petiscou os snack’s enquanto tratava de cozinhar. De repente apercebeu-se que tinha a televisão ligada e lançou uma fisgada à notícia. Mais uma vez era a notícia de uma criança violada e assassinada deixada ao pé da autoestrada. O nome da criança era David. Lembrou-se de ligar à mãe.
                - Estou, mãe, é a Bruna – apresentava-se Bruna.
                - Então, filhota, como estás? Quando deixas isso da polícia? Já tens cinquenta e sete anos, filha. Ainda por cima estás divorciada, precisas de um homem, filha.
                - Não preciso nada. Como está o pai? – perguntou Bruna.
- Está bem. Está a falar com o teu tio Manuel. Eu estou aqui na cozinha com a tua tia Catarina – retorquiu a mãe de Bruna.
- Deve andar bem entretido, ontem liguei para o telemóvel dele, mas nada, também liguei para ti, e tu também nada.
- Ó Filha, estava aqui na conversa, nem reparei. Quando vens até cá? – questionou a mãe de Bruna.
-Talvez para a semana apareça aí por Lavra, também não é muito longe daqui e assim aproveito para estar com vocês. Bem, vou desligar, amanhã ligo. Adeus – despediu-se friamente.

David, uma criança de oito anos, era uma criança muito reservada, não dava confiança a qualquer outra das crianças nos recreios. Por vezes, aparecia para jogar à bola, porém, como não tinha muito jeito, punha-se na “mama”, como diziam os seus colegas. Havia dias que marcava uma série de golos e saía do recreio feliz, sim, não jogava muito bem, mas marcar golos dava-lhe autoestima e tema de conversa com os outros colegas. Os pais eram divorciados, esta nova sina que apareceu em avalanche na década de oitenta, e David vivia num constante jogo de interesses dos seus pais na luta pelo seu coração. De forma que era um miúdo excessivamente  mimado. Tal educação mostrava-se prejudicial na sua interação social. Senhora Professora, o David fez xixi nas calças, dizia um dos colegas de David, e este, ouvindo o queixume, entornou meia coca-cola nas calças, Não foi nada, senhora professora, deixei cair a cola nas calças. Naquele dia, as outras crianças gozaram todas com ele e acabou mesmo por chorar, o que foi pior, pois passaram a apelidar-lhe de “choramingas mijão”. Choramingas mijão fazes xixi nas calças ou no chão? Os pais, por sua vez, pouco se importavam com os comportamentos depressivos do filho, ou seja, a resolução dos problemas era conseguida com um novo brinquedo ou um novo gelado. Um certo dia, pelo que dizem os colegas, um Porsche amarelo passou pela escola e David entrou. Não se sabe para onde foi, somente o seu destino, sendo encontrado numa mata em Lamego só com a camisola colocada e o resto do corpo nu. Tinha o pescoço partido, foi encontrado sémen somente na boca da criança. Após uma avaliação mais cuidada da situação, verificou-se que o rapaz foi violado e, possivelmente, morreu no ato por asfixia e estrangulamento pelas duas mãos do agressor e violador. Depois de outra análise, e isto foi contado por um inspetor amigo de Bruna presente na investigação, que o pedófilo ainda voltou uma semana depois para se satisfazer sexualmente com o cadáver da criança.

Mais um dia para Bruna. Levantou-se, fez umas torras e bebeu um café. Aproveitou ainda para ligar para um amigo com o qual se encontrava para encontros ocasionais. Chamava-se Cândido e era um intelectual cheio de aspirações a escrever livros e discutir literatura a toda hora. Era casado, porém, a mulher não o satisfazia e ele procurava aconchego em Bruna. Tocaram a campainha. Foi abrir e era Cândido.
- Então, porque não tens atendido as minhas chamadas? – atacou logo Cândido.
-Entra. Não tenho tido muito tempo – ripostou. Não era bem verdade, aliás, ela sentia, ultimamente, alguns remorsos pelo simples razão de estar envolvido com um homem de família.
Cândido sentou-se no sofá. O fedor era intenso, mas Bruna nem se dera ao trabalho de explicar que dormira no sofá por causa da quantidade de mosquitos emparelhada de noite no seu quarto.
- Estou a fazer umas omeletes com queijo, molho de soja e bocadinhos de fiambre e bacon, queres? – ofereceu ela a Cândido.
- Não, não, tenho andado um pouco indisposto.
Cândido parecia nervoso. A sua postura mostrava algo nos seus tiques nervosos. Ela pensou logo que ele ou tinha problemas em casa com a mulher, ou, simplesmente, andava a exagerar nas leituras pesadas e na escrita. Naquele dia, ele trazia um casaco de bombazine, com folhos castanhos nas ombreiras, característico de um intelectual, com o cachimbo guardo no bolso esquerdo do casaco a fazer chumaço, trazia dois livros, um exemplar de Nikolai Gogol, “Almas Mortas”, pouco lido ou mesmo nada conhecido em Portugal, dado que os portugueses, aqueles que ainda liam, eram restritos às vontades comerciais das editoras, e outro de José Saramago.
- Esse Saramago é o comuna, não é? – perguntou Bruna.
- Sim, é esse mesmo. É muito bom. O Lobo Antunes também – acrescentou Cândido.
- Esse Gogol é algum dissidente comunista, como aquele Andrei Amalrik?
- Não, não, Gogol já vem do século XIX, é o bastião do realismo e o mestre do romance russo, apesar de alguns escritores com Dostoiévksi o ridicularizarem, será nele que a literatura russa buscará as bases.

Nesse dia, não tiveram relações, pois ela, como não lhe apetecia, talvez devido àqueles ataques de consciência, ou então porque começava a querer um homem para se comprometer, inventou que estava naquela altura do mês. Cândido, no início, amuou e ficou sem falar durante uma hora, porém, vendo que a sua birra em nada a incomodava, lá acabou por falar de literatura, ou melhor, de fazer análise literárias aos escritores contemporâneos, com ela, naquilo que era, evidentemente, mais um monólogo do que propriamente um diálogo. 

sábado, 21 de setembro de 2013

A Chaminé nazi


É na amargura do vapor,
Tão negro e obsoleto
Que respiro o cinzento, o cinzento…
O Cinzento que se solta,
Como aquele que saía das chaminés nazis…
E grita,
Mas gosta de fazê – lo com os olhos
Porque sabe que não pode falar,
E se pudesse não gritaria…
Continuaria a ouvir o som da morte e a ver o seu grito!
Neste instante, penso e choro.
Quando dou por mim,
Estou cinzento e sinto – me como um judeu
Revoltado com as pseudo – cientificidades,
Revoltado com o Mundo,

Revoltado com a cegueira que não é minha…