domingo, 25 de maio de 2014

domingo, 1 de dezembro de 2013

Auto dos Danados

Ultimamente a Constituição portuguesa tem sido algo de alguns comentários negativos por parte do governo maioritário de PSD-CDS. E, mesmo quando os ataques são dirigidos ao Tribunal Constitucional, indiretamente, procura-se atacar a mesma Constituição. Se há benesse que a entrada na era contemporânea deu ao mundo ocidental, a partir das ideias liberais de Rousseau, Montesquieu e Voltaire, foi a representatividade dos cidadãos integrada num documento, no tal “contrato social” de Rousseau. A Constituição de 1822, muito marcada pelas influências da Constituição espanhola de Cádis, foi a primeira. O século XIX acompanharia uma série de alterações da Constituição, embora isso oscilasse mais numa legitimação entre os defensores da monarquia e os liberais (que procuravam esvaziar o poder monárquico, redistribuindo e dividindo os poderes judicial, legislativo e executivo). Ora, este documento simboliza, assim, a representação legal de todos os cidadãos, e, de facto, a Constituição, como afirma o dr. Jorge Alves, “ocupa o lugar central na hierarquia legislativa dos países que, desde o liberalismo, adoptaram este dispositivo de mediação entre os cidadãos”.
O século XX não seria diferente do século XIX, dado que, também, a Constituição marcaria o cunho político da implementação de diferentes regimes, desde a Constituição de 1911 até à de 1976 (a nossa atual, porém já teve 7 revisões desde então). O próprio regime totalitário apelidado de “Estado Novo” possuía tal documento, aliás a sua institucionalização e legitimação só se deu com a sua formulação. Não querendo estar a entrar em controvérsias, Passos Coelho, ao querer sobrepor-se ao Tribunal Constitucional, está a acentuar aquilo que foi a chamada a “ditadura do executivo” tão premente no regime ditatorial salazarista. Além de que a pouca intervenção do Presidente da República na moderação e na intervenção de conflitos é quase igualitária àquela que teve Craveiro Lopes (eleito em 1951), ou seja, quase nula. Com certeza que tais períodos e circunstâncias políticas são bem diferentes, mas serve para fazer algumas analogias.
Alterar e criticar a Constituição será assim o quê exatamente? Parece mais uma tentativa de fuga a algumas responsabilidades que o Estado tem com o seu povo. Por exemplo, veja-se o seguinte princípio: “Promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais” (artigo 9.º, “Tarefas fundamentais do Estado”). Por outro lado, em defesa do Tribunal Constitucional, este cumpre somente o seu dever. Esta minha afirmação pode ser facilmente corroborada pelo artigo 223.º (“Competência”): “Compete ao Tribunal Constitucional apreciar a inconstitucionalidade e a ilegalidade”.
Em conclusão, um Governo que não respeita a Constituição e a sua rede de poderes não se respeita a si próprio, ou melhor, não respeita o seu regime e os seus representantes (nós todos).

Bibliografia consultada:
ALVES, Jorge Fernandes (2006) - A lei das leis. Notas sobre o contexto de produção da Constituição de 1911. Revista da Faculdade de Letras de Letras, série 3, Vol. 7, p. 169-180.
ROSAS, Fernando – “O Estado Novo (1926-1974)” in MATTOSO, José. História de Portugal.Vol.7. Lisboa: Círculo de Leitores,p.202-206.
Fonte:

Diário da República, 12 de Agosto de 2005, p. 4642-4686.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Auto dos Danados

Nesta semana centrar-me-ei numa análise linear das crises do Estado em relação ao avanço do capitalismo tardio, seguindo a perspetiva de Jurgen Habermas.  Ora, estes problemas são apelidados de “crises”, dado que estes distúrbios não permitem que determinado sistema social seja capaz de continuar o modelo desse sistema.
                O capitalismo tardio marca o fim do capitalismo liberal, na medida em que o mecanismo de mercado é substituído pela intervenção e a ideologia liberal pela iniciativa do Estado em corrigir as tendências destrutivas do livre-cambismo puro. O Estado guarda para si a responsabilidade da segurança social e do crescimento económico. O que acontece é que, atualmente, assistimos a uma dessas crises, a crise económica. O descontrolo dos processos acumulativos de capital dá-se pelas suas contradições e manifesta-se na falência e no desemprego. Ora, Passos Coelho devia ter mais atenção ao que Habermas diz, tendo em conta que não segue, somente, a dimensão de crise económica, mas, também, de crise administrativa, ou melhor, de racionalidade (embora a sua política esteja muito dependente do FMI, tem responsabilidades e espaço de manobra para negociações e outras alternativas), pois esta surge quando o Estado não efetua as políticas técnicas a que se propôs. Por sua vez, este processo é um bocado como aquelas bonecas russas que sempre que se abre uma aparece outra no seu interior e (as matrioshkas), como consequência, a crise da racionalidade dá lugar à crise de legitimação. O governo de coligação PSD-CDS sofreu e tem sofrido, violentamente, esta crise de legitimação. No entanto, tire-se o chapéu à política de comunicação desta governação, na medida em que, a partir dos artigos de opinião, dos vários textos de blogues e da invisibilidade construída na pessoa do primeiro-ministro, conseguiu, constantemente, adiar e adiar um debate profundo sobre esta legitimação.
                Por fim, toda esta correlação de crises leva a uma bloqueio no sistema de valores culturais e sociais. É feita a crítica à funcionalidade da sobrevivência do capitalismo. Dá-se a crise de motivação. Surgem os movimentos de resistências que buscam alternativa, desde anarquistas a outros radicais de extrema-esquerda ou extrema-direita. Há uma ameaça, assim, à nossa democracia. As democracias nacionais foram abaladas pela crise e pele fenómeno de globalização que baralha todos os limites e coloca em ribalta as tecnocracias construídas e formadas num patamar que se vai moldando e camuflando em democracias conformadas com a vontade dos mercados.
                                              
Bibliografia consultada:
LUBENOW, Jorge Adriano (2012) - A DESPOLITIZAÇÃO DA ESFERA PÚBLICA EM JÜRGEN
HABERMAS SOB A PERSPECTIVA SÓCIOPOLÍTICA. R. Intern. Fil, Vol. 3, N.º 1, p. 54-95.

GASPAR, M. (2013, 28 de Outubro) – “Habermas: partidos europeus optam pelo oportunismo perante um desafio histórico”. Público.

(crónica publicada no "Jornal de Matosinhos").

sábado, 16 de novembro de 2013

Auto dos Danados

Um país alicerçado de falso betão estrangeiro é a nossa realidade. Esta supremacia do Fundo Monetário Internacional (FMI) só é credível pelo capital emprestado, pois as suas políticas e competências ficam muito aquém da expetativa. Veja-se o exemplo do fracasso da política de prevenção de crise em 1994, no México, e nos vários países asiáticos em 1998. Da mesma forma que a remodelação e racionalização do sistema de prevenção, em 2008, é mais do mesmo. Desde o excesso de liquidez, ao crédito explosivo escondido nos recônditos do “boom” imobiliário e à displicência relativamente ao risco. O FMI, após o G-20 em Londres, teve o seu avale para se tornar na instituição financeira regularizadora de todas as economias abatidas pela crise do sub-prime americana de 2007. Ora, o seu papel de mediador e reformador a curto e médio prazo em vários países, cujo desconhecimento das suas realidades para além dos números é total, é bem esclarecedor de uma premissa fanática de reformulações que só se importam em tirar ovos, mesmo que já não existam galinhas. Este masoquismo veio à baila, recentemente, pela boca de Paul de Grauwe, professor conceituado na London School of Economics e antigo membro do FMI, como se depreende das seguintes declarações: “É difícil entender como pode o Governo magoar a população e sentir-se orgulhoso disso”; “Portugal e outros países do Sul da Europa deviam unir-se e dizer que a maneira como os tratam não é aceitável. Quando Portugal, Grécia, Irlanda e Espanha levam a cabo medidas de austeridade, os outros países do Norte da Europa deviam fazer o inverso e estimular a economia”.
Bom, mas a intenção deste artigo opinativo não é analisar, somente, a política económica de austeridade padrão adotada pelas principais instituições económicas e financeiras mundiais – o que também seria bastante interessante -, mas, sim, também, os efeitos que esta austeridade tem na sociedade portuguesa. Um Estado moribundo pela contenção de despesas, um compreensível aumento de impostos, a privatização a quase todo o setor público, diminuição dos salários, precarização e “neo-escravidão” no trabalho, contribui tudo para uma sociedade desigual e muito próxima de um feudalismo promíscuo. Mais grave ainda é a desequilibrada flexibilização do mercado laboral (é a solução mais fácil e desumana para a questão do desemprego), posição assumida pelo nosso governo neo-liberal atual. Esta visão, curiosamente, esbarra naquela que é defendida pela Organização Internacional do Trabalho. De facto, tudo parece ficar ainda mais sinistro e confuso quando, nos últimos encontros do G-20, ficou explanado um “Plano Global de Recuperação e Reforma” que defendia a urgente necessidade de construir um mercado de trabalho justo e de estímulo ao emprego. Não me parece, de todo, que a questão social esteja na agenda e, por sua vez, isso muito se deve à insustentável leveza da ideologia fugida do bolso de Margaret Thatcher. Este paradigma da governação neo-liberal, juntamente com o excessivo poder supranacional, coloca em causa o Estado de Direito, ou seja, os eleitos pelos cidadãos transcendem a sua legitimidade e legalidade (as constantes tentativas de desrespeito à Constituição Portuguesa, pelo nosso Governo, são convites endereçados a todos nós para observar um espetáculo de auto-mutilação, no qual os nossos direitos são espezinhados).
No cômputo final, os cidadãos estão a ser colocados num patamar de responsabilidade demasiado expositiva em relação à crise. Esta não é a crise do povo. Além de que caminhamos, serenos, para o fim do Estado Providência. Quando isso acontecer, onde nos terá levado a austeridade e o último degrau capitalista?
Bibliografia consultada:
BERMEJO, Romualdo; GARCIANDÍA, Rosana (2009) - EL FONDO MONETARIO INTERNACIONAL ANTE LA CRISIS FINANCIERA ACTUAL. Revista Electrónica de Estudios Internacionales, p. 1-34.
CALVO, Miguel Moltó (2012) - A NOVA GOBERNANZA ECONÓMICA NA UE: AVANCES E CARENCIAS. Revista Galega de Economía, vol. 21, p. 37-66.
FERREIRA, António Casimiro (2011) - A sociedade de austeridade: Poder, medo e direito do trabalho de exceção. Revista Crítica de Ciências Sociais, p. 119-136.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013



ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ESTÉTICAS A PROPÓSITO DAS 
   CONCEPÇÕES DE NELSON GOODMAN 
                                                                                 
                                                                                                                                                                     


        O construtivismo de Goodman leva-o a recusar a existência de qualquer realidade em si, independente e autónoma. O mundo não é um dado exterior aos esquemas de construção de descrições e interpretações que o visam apreender. Nem tão pouco se pode falar de objectos, de coisas ou de estados de coisas únicos que correspondam a diferentes processos de representação. O que Goodman afirma é que o mundo é construído a partir de sistemas de símbolos que são "versões-de-mundos". A realidade surge, então, confinada numa determinação simbólica que organiza os seus referentes, lhes dá valor e significado no âmbito de cada sistema. Assim, porque " não estamos a falar de múltiplas alternativas possíveis a um único mundo real mas de múltiplos mundos reais ", criamos mundos quando criamos  versões-de-mundos".
       O anti-realismo ou convencionalismo de Goodman sugere vários problemas. Por exemplo, poderemos questionar se ao construirmos versões estamos a construir realidades correspondentes, ou se qualquer construção se coloca apenas no campo das representações. Por outro lado, é também pertinente perguntar o que é o mundo, o que dele fica que possa  ainda ser determinado quando o tornamos independente de toda a conceptualização. São questões que se articulam dentro do mesmo nível de argumentação. Falar de uma realidade ontológica livre de teorias levar-nos-ia a não compreender a presença de uma pluralidade de versões enquanto sistemas diferenciados de simbolização. Como diz Carmo D´Orey : " Não faz, por isso, sentido, falar de qualquer realidade independente das versões nem de qualquer ponto de partida autónomo percepções, dados e matéria, experiência e factos, todos são construídos e relativos à versão de que fazem parte " .
       A recusa em aceitar um mundo livre de teorias não significa defender uma posição imaterialista que nega a existência de um  " mundo " anterior e independente dos actos de descrição. Significa apenas que dele nada podemos dizer ou pensar, ele é-nos incompreensível, inatingível, sendo, por isso, inútil e ilusória qualquer discussão que pretenda esclarecer as propriedades e as características essenciais do mundo.
       O que está, então, em causa é que se o mundo é construído através de símbolos, " adoptar um sistema consiste em adoptar uma convenção que fixa a referência dos seus termos. Essa convenção pode ser produto de habituação ou de estipulação. Mas, uma vez adoptado o sistema, o que uma coisa é torna-se uma questão de  facto no âmbito desse sistema " .
       O pluralismo de Goodman implica afirmar que nenhuma versão é superior a outra, tanto a ciência como a filosofia, ou a arte ou o conhecimento corrente, são sistemas simbólicos com a mesma validade quando comparados. Qualquer contradição resulta apenas do facto de estarmos perante versões que dizem respeito a mundos diferentes. Não podemos estabelecer hierarquias de certeza e rigor. Não há construções simbólicas mais ou menos perfeitas entre si, mais ou menos eficazes, há versões, versões que são verdadeiras enquanto sistemas de símbolos aplicados aos seus respectivos campos de referência. Nada tem um valor em si mesmo,  o  que  implica   reconhecer que não existem linhas rígidas de divisão entre símbolos e referentes, mas que estes só se exprimem, significam e funcionam no jogo de uma simbolização contextual, ou seja, dizendo de outro modo : " Falar de conteúdo não estruturado ou de dado não conceptualizado  ou  de  um substrato sem  propriedades  é autodestrutivo; Porque o discurso impõe  estrutura,  conceptualiza, atribui propriedades "  . Assim, os sistemas de símbolos  " são relativos aos nossos objectivos e interesses e todos podem ser correctos ou incorrectos de várias maneiras. Também para todos tem de haver critérios de aceitabilidade " .
             Desta perspectiva pluralista decorre, como vemos, uma certa posição relativista. A existência de várias versões legítimas não afecta a possibilidade de reconhecer as que são válidas e as que não são, e as que sendo são-no apenas dentro dos objectivos traçados. Segundo Goodman, é o critério de correcção que ao articular-se com a noção de ajustamento permite determinar a aceitabilidade ou não das versões. É um critério que tem uma extensão ampla, pois aplica-se não só ao domínio da teorização científica como ao domínio das manifestações artísticas. Digamos, resumidamente, que a referida noção surge quando queremos falar de verdade, mas que tem vantagens, pois não se trata de defender , como se compreende pelas teses enunciadas, uma perspectiva representacionalista e essencialista do real, mas de ajustamentos entre mundos e versões-de-mundos, de acordo com os processos e finalidades previamente definidos.
       Se  nos centrarmos, agora, mais concretamente   nas questões estéticas,  que  são   as  que  nos   preocupam,   surge  clara  a  ideia  que  a demaração tradicional entre a ciência e a arte não faz mais sentido, sem contudo se deixar de assinalar diferenças, mas diferenças que ocorrem, precisamente, das características específicas  das respectivas construções simbólicas. Como diz C. d´Orey: " Admitida a nova epistemologia, a concepção anti-intelectualista, que opõe a arte à ciência, torna-se insustentável. Dicotomias vagas e obscuras, mas profundamente enraizadas, são superadas: não mais de um lado a beleza, a intuição e a emoção e, do outro, a verdade, a racionalidade e o saber. Porque nenhuma destas propriedades é privilégio da arte nem da ciência e todas são insuficientes para distinguir uma da outra. A tarefa comum de ambas é a construção de mundos através de sistemas de símbolos e o valor de qualquer delas depende da correcção das construções realizadas. Ambas podem ser correctas e incorrectas de diferentes maneiras; ambas podem ter um domínio de aplicação universal: para ambas existem critérios de aceitabilidade, e testes e experiências a que podem ser submetidas; em nenhum caso há garantias definitivas ". 
       I) A arte é um  modo de fazer mundos, ou seja, é um sistema de simbolização. A arte consiste, pois, numa conjunto organizado de símbolos   (esquema ) que se aplica a um conjunto de referentes (campo de referência ).
       Símbolos e referentes só adquirem valor  sintáctico e semântico  no interior do sistema que os  integra. Como não há símbolos e referentes fora de qualquer sistema, o significado de um símbolo, como ele funciona, varia na relação directa com os contextos que o situam. Não há nada em  si, não há nada intrínseco que se possa definir sem ser numa teia de relações. Para os símbolos e para os referentes também o processo é assim, e porque é assim, tudo pode ser símbolo. A concepção ontológica de Goodman impede-o de estabelecer aí uma ruptura essencial. Quando Marcel Duchamp expõe os  Ready Mades, ou seja objectos de uso tais como um cesto de arame cheio de cubos de mármore, um suporte de garrafa ou um urinol, e dando-lhes nomes que, talvez com excepção do urinol, a que chama  La Fontaine, não tinham qualquer relação com o objecto, o que podemos perceber, entre outras intenções, é que estamos perante objectos que geralmente funcionam mais como referentes, mas  que  no contexto  da exposição adquirem o estatuto de  símbolos ao revelarem determinadas propriedades.
       Relativamente à referência, é preciso dizer que Goodman refere  duas formas básicas, que são a denotação e a exemplificação, e que .é esta última que vai permitir, pelo seu alto grau de operatividade , equacionar  e formular um  conjunto de problemas  que se coloca à filosofia da arte.
       A exemplificação permite-nos entender o carácter simbólico da arte. Se observarmos   o  Quadrado  Negro  (1913) de K. Malevitch, ou  o Recorte em linóleo (1917) de V. Huszar, poderemos perguntar o que é que aí se denota  como pinturas  abstractas  que são. Possivelmente são símbolos, mas  a que referentes se aplicam ? A ausência destes anula, aparentemente,   todo o processo de simbolização.  Nessas telas não há nada para denotar logo, nada para simbolizar. Ora, é a exemplificação que permite  defender que toda a obra de arte, mesmo que não denote, não deixa de simbolizar porque refere sempre algo. A obra, por exemplo, de Malevitch exemplifica  as  cores  preta  e  branca   (ou a  ausência   de   cor e   a quadrangularidade).  Mais:ela   exemplifica  o   realce   dado   à    superfície (quadrada branca e um quadrado preto rigorosamente centrado), que segundo o pintor, é o único espaço de definição da pintura, o seu ponto zero.
       É também a noção de exemplificação que  nos irá permitir articular vários problemas no concernente à problemática do estilo em arte. 
       II) Como sabemos,   o estilo faculta-nos a vantagem de classificarmos as obras de arte, sejam quais forem a suas formas de expressão, segundo determinados critérios, de modo a melhor compreendermos as relações que se estabelecem, em termos de contrastes e semelhanças. Permite-nos, ainda, entender a arte numa perspectiva diacrónica, bem como sincrónica.
       O estilo atravessa, digamos, todas as propriedades classificativas das obras de arte:   o conteúdo ,  o género,  os  media.  Por  exemplo, em O Profeta / Auto-Retrato Duplo (1911) de Egon Schiele, trata-se, respectivamente, de retrato, pintura de cavalete  e  óleo sobre tela. É o estilo que assinala o  lugar   que a obra, como objecto singular, ocupa, relativamente às afinidades e filiações primaciais que mantém com outras, de modo a identificá-la   no plano da produção de um artista, grupo, período, escola ou região. No caso concreto de Egon Schiele, estamos face a um trabalho que reflecte as tendências plásticas essenciais do artista, integrando-se no movimento do expressionismo alemão do início do século.
       O estilo também se relaciona com os contextos. Assim, podemos dizer que o poeta Fernando Pessoa  se  integra no âmbito das correntes literárias contemporâneas, que é um  pós-simbolista e que fez parte do movimento do  modernismo em Portugal (figura particularmente interessante, porque poderemos sempre falar dos vários contextos heteronímicos pessoanos). O estilo, como dissemos, conduz-nos para a tentativa de elucidação  de problemas que a filosofia da arte   traz  à colação.   Em  primeiro  lugar, a análise da própria estrutura interna do estilo revela-nos que a sua percepção exige uma grande capacidade de abstracção, como nos diz C. d´Orey ao citar os estudos que são realizados no domínio da psicologia da arte. A esta capacidade deve acrescentar-se a de complementação, no sentido  de dizer  mais  ao que é dito, e de suplementação, na procura de superar o imediatamente dado.
       É ainda a mesma autora que nos alerta para os problemas que são suscitados pela reflexão sobre o estilo. O problema principal é o de saber como determinar as propriedades estilísticas de uma obra de arte, perante o corpo constituído por todas as propriedades estéticas. Outros problemas são deste decorrentes: " São todas as propriedades das obras de arte real ou potencialmente estilísticas? É o estilo um atributo exclusivo das obras de arte? Qual a importância do estilo? Esta última questão subdivide-se em duas :é a identificação do estilo de uma obra de arte uma condição necessária e/ou  suficiente para uma apreciação esteticamente correcta? É a presença de estilo uma condição necessária e/ou suficiente para que uma obra de arte tenha qualidade? Finalmente, qual é a relação referencial que uma obra de arte tem com o seu estilo? " . Da nossa parte, gostaríamos  de levantar  outros problemas: o que nos leva a reconhecer as mesmas propriedades que caracterizam um determinado estilo quando lidamos com diferentes formas de expressão artística? Ou seja,  porque  integramos as obras pictóricas de E. Munch e a música atonal de A. Schonberg  na corrente estética do expressionismo? Que  influências se cruzam entre as várias artes que possam derivar de propriedades estilísticas (Schonberg além de compositor, pertenceu à chamada Escola de Viena, pintou alguns quadros expressionistas, como o  Olhar Vermelho)?   Questões para outra reflexão.
       A obra que temos vindo a citar de Goodman explicita a sua posição em relação a um enquadramento teórico do estatuto do estilo. Os habituais dualismos forma/conteúdo, sentimento/conhecimento, intrínseco/extrínseco devem ser superados, pois não permitem entender, com rigor, o funcionamento da arte na sua complexidade.  
       III) A dicotomia  que se baseia na primeira oposição pressupõe a ideia que o estilo está na forma (como é dito), enquanto o conteúdo surge à margem das propriedades estilísticas, é o assunto  (o que é dito). Temos, por um lado, o modo  de representação e, por outro, a matéria de representação. Se é certo  que são os elementos formais que contribuem mais decisivamente para a apreensão do estilo, não podemos  deixar de defender que muitas vezes o conteúdo é relevante  para a caracterização do estilo. O poder metafórico da obra de E. Munch vive muito da presença constante de personagens angustiadas situadas em espaços enigmáticos. Assim como  O Cristo Amarelo  ( 1889 )  de P. Gauguin é marcado, não só por uma paleta de cores específica que reflecte o período  de  Pont-Aven, mas também pela representação que desloca um facto do seu contexto temporal. " Na verdade, mesmo quando a única função em questão é dizer, teremos de reconhecer que algumas  características  notáveis  do  estilo  são características da matéria e não o modo de dizer. O assunto está envolvido no estilo de mais de um modo ".
       Parece, pois, claro que o estilo não pode partir da distinção que se queira traçar entre forma e matéria, mas  que  nele estão sempre presentes  ingredientes de um todo que recolhe aspectos formais e substanciais. Se o estilo pode ser o mesmo de um escritor que trabalha  diferentes temas, assim como  o mesmo tema pode ser objecto de muitos modos de o dizer, tal significa que são apenas certas características do  que é dito  e do  como é dito   que contribuem para se poder avançar na definição do estilo.  
       IV) Também  o que é exprimido e o modo como é exprimido se envolvem em processos de correlação, cuja separação não pode ser legítima para fundamentar  o estilo nos sentimentos expressivos. Se é um dado adquirido que estes muitas vezes funcionam para a identificação de propriedades estilísticas, generalizar tal facto leva-nos a alguns equívocos, e por várias razões. Primeiro, porque o que é exprimido é uma face de como  é exprimido o que é exprimido. Depois, porque o modo de expressão  não pode ser imediatamente identificado com sentimentos e expressões, gerais ou particulares. Há expressões que não possuem  qualquer carga  emotiva, o que significa  que sendo relevantes o são  por outra ordem de razões. Por outro lado, deve referir-se que há propriedades estilísticas que são exclusivamente formais e estruturais (sintácticas), carecem de  qualquer tipo de expressão, como é o caso das pesquisas de M. Gastini, em que o tema dominante é o espaço e a relação  que os signos assumem   na sintaxe da obra, bem como a utilização de materiais diversos que compõem a estrutura geral.  
       V) Carmo D’Orey fala num princípio que designa por critério de simbolização, articulando-o com outro, que chama  critério de atribuição. Pretende com o primeiro registar as formas  que  no funcionamento simbólico de uma obra de arte actuam, e que podem, quaisquer que elas sejam, ser pertinentes para o estilo, como sejam: representar  (ou descrever), exprimir, exemplificar e aludir. O outro critério  visa preencher algumas lacunas, pois  não é atendendo exclusivamente à simbolização que demarcamos os factores de significado estilístico. Nem tudo o que uma obra estética exemplifica é relevante para o estilo. Les Demoiselles d’Avignon (1907)  é um quadro de Picasso em que o Cubismo reside, fundamentalmente, nas formas, por exemplo, os rostos são deformados, as figuras foram fragmentadas, e não nas  cores, embora  ambas simbolizem por exemplificação.
       O  critério de atribuição  é o reconhecimento da  " assinatura ", pois responde às questões: Quem? Quando? Onde? Mas, também este critério não satisfaz só por si  a busca da determinação das propriedades estilísticas. Aquilo que faz parte da assinatura  e que torna possível identificar um autor não é coincidente  com o estilo da obra em causa, mas só alguns elementos próprios aí recolhidos  funcionam estilisticamente.
       Como proceder, então, para  afirmar que só algumas propriedades de uma obra de arte são estilísticas e que outras não o são?   A resposta é dada pelas propriedades que obedecem aos dois critérios. " Basicamente, o estilo consiste naqueles traços do funcionamento simbólico de uma  obra  que  são característicos do autor, período, local ou escola. (...) Segundo esta definição, o estilo não é exclusivamente uma questão do como em contraste com o quê, não depende nem de alternativas sinónimas nem de escolha consciente entre alternativas, e compreende apenas, mas não todos, os aspectos de como, e daquilo que, uma obra simboliza " .
       A compreensão do estatuto do estilo, a partir do funcionamento simbólico de uma obra de arte, vem esclarecer-nos algumas questões relevantes. Reconhecemos  que certas características podem ser estilísticas em determinadas obras e não noutras, que nem tudo o que é relevante e constante esteticamente é importante em termos da definição de um estilo. Pode ser ou não ser. O período azul e o período rosa de Picasso são identificados pelo uso sistemático da cor azul e da cor rosa, respectivamente, assumindo aspectos pictóricos que marcam  o estilo do trabalho do pintor. Contudo, um quadrado de cor azul numa tela de  Malevitch  não tem sentido estilístico. Também a qualidade de um tipo de lápis repetidamente utilizado por um mesmo artista não constitui em geral  causa de estilo.
       É  a noção de simbolização exemplificativa que nos fornece o critério. Toda a obra de arte, como já o dissemos, simboliza, mas nem tudo o que ela simboliza é estilístico, mas apenas o que ela simbolicamente exemplifica. E como podemos alargar a noção para todas as formas de arte, estamos sempre face a construções simbólicas, sejam quais forem os media  que cada arte empregue, as propriedades estilísticas  são a  forma no sentido de propriedades  exemplificadas.                                                                                    Se atendermos, agora, à afirmação de Goodman de que o estilo não é algo que dependa da escolha do artista entre alternativas, nem das suas decisões mais ou menos conscientes, nem  da personalidade, então aparece-nos como clara a tese que afirma que  é na lógica da simbolização e na lógica da atribuição  que se deve construir uma teoria do estatuto do estilo. 
       VI) Estatuto que suscita a curiosidade de saber qual o grau da sua relevância. Ou seja: "Trata-se de saber se as propriedades estilísticas têm alguma relevância estética mais imediata do que as propriedades não estilísticas que auxiliam a atribuição "  . É absolutamente necessário e suficiente a percepção do estilo para a  hermenêutica de uma obra de arte? 
       A percepção artística é, como toda a percepção, um processo complexo  que nos leva à recusa em  aceitar que o  observador seja um receptor  passivo, conformado a receber estímulos, sem intervir activamente no fenómeno  perceptivo. A apreciação de uma obra de arte  não pode limitar-se ao que é visto, porque o objecto do olhar é sempre condicionado  pelo modo como é visto. Nenhum olhar é puro, daí se poder falar de percepções correctas e incorrectas. Correctas serão aquelas em que temos os instrumentos, os conceitos estéticos que nos permitem situar  a obra de arte como um  membro de um grupo mais geral de obras cujas propriedades são reconhecidas a um autor, escola, local ou período. Fruir a dimensão plástica das obras de um Degas, de um Monet ou de um Cézanne é saber ver que o que os preocupa  não é o conteúdo temático, mas  a luz, nas suas tonalidades mutáveis, e a natureza, que deve ser captada  num   imediatismo temporal e sensível. É saber avaliar estes objectos estéticos como manifestações do movimento impressionista francês do início do século. Assim: " O discernimento do estilo é um aspecto integrante da compreensão das obras de arte e dos mundos que elas apresentam " . Dizer que na obra estão todas as características estéticas relevantes, não significa  considerar, como a corrente formalista quer fazer crer, despiciendo o recurso a conhecimentos externos à obra de arte. O  critério  de atribuição, já mencionado,  é determinante, para se encontrar as respostas exactas às interrogações: Quem? Quando? Onde?
       Talvez possamos falar de uma dialéctica  (diálogo)   entre o  objecto  dado  à percepção estética  e as categorias  que o pretendem compreender. Ao  atribuirmos uma obra de arte a um autor em concreto (a " assinatura ") estaremos numa posição que nos permite a identificação das propriedades estilísticas, ou seja, a filiação de um artista com o seu estilo (peculiar) influencia a leitura da obra. Contrariamente, se nada conhecermos do  abstraccionismo geométrico, em que  a preocupação dominante é a  autonomia da forma, o suprematismo de Malevitch escapar-nos-á. Como diz C. d’Orey, recordando Goodman: " Percepcionar correctamente uma obra de arte, implica, tal como acontece com qualquer outro símbolo, percepcioná-la no sistema a que pertence. Só no âmbito desse sistema, podemos saber o que simboliza e como simboliza, ou seja, interpretá-la " . 
       A partir do exemplo referido do Quadrado Negro de Malevitch, só seremos capazes de apreender o que ele representa,  exprime e exemplifica, se conhecermos as premissas  em que o abstraccionismo assenta. É a associação a um estilo que faculta a captação do que numa obra  de arte é representado, no que nela é exprimido, bem como exemplificado. Aliás, esta última forma de funcionamento simbólico da arte esclarece-nos eloquentemente sobre este ponto, mais do que , possivelmente, as outras duas, dado que o que pertence ao plano da exemplificação ou não exige recusar o que na imediatez se  oferece ao olhar (traços, cores, sombras...), e  só um corpo de conhecimentos prévios nos assegura, com rigor, uma avaliação correcta do que na obra é exemplificado.
       O domínio dos estilos em arte é, pois, uma das condições necessárias para uma captação correcta das qualidades estéticas que uma obra de arte revela. Mas não é suficiente. A correcção não se restringe à identificação do estilo, porque mesmo o que não é estilisticamente relevante não deixa, por esse facto, de poder ser esteticamente importante, enquanto elementos de referência, eventualmente, significativos no contexto geral de simbolização. Limitarmo-nos ao estilo é não compreendermos  toda a dimensão de uma obra de arte como construção de um sistema de símbolos.
       Mas será o estilo factor decisivo da qualidade de uma obra de arte.? A resposta terá de ser negativa, não só porque  nem todo o estilo tem qualidades, e mesmo o excesso de estilo é uma deficiência estética, como não é, como afirma Goodman, a propriedade mais significativa entre todas as propriedades de uma obra de arte. Qual a legitimidade para o ser? 
       VII) A análise do estatuto do estilo coloca-nos, ainda, perante a questão da sua determinação. Como se reconhece um estilo? Com base na composição dos diferentes elementos que o compõem ou como um todo? Por intuição   ou   racionalmente?   A   intuição  parece  ser  fundamental  na apreensão da totalidade do que, no funcionamento simbólico de uma obra de arte, são as funções estilísticas, entre outras não estilísticas; funções que se exercem tanto no que ela exemplifica, como no que representa, exprime ou alude, e que surgem associadas ao conjunto das obras de um autor, escola, período, local, etc. (critério de atribuição) .
       Os traços característicos do estilo de um artista podem estar ou não sistematicamente presentes ao longo da sua produção artística. A frequência pode ser inconstante. O mais importante está no facto desses traços serem específicos, tornando o  autor singular face aos demais. Sabemos também  que há representações que se repetem usualmente na obra de um autor (por exemplo, paisagens) e que não constituem  qualidades de um estilo, por ser frequente noutros autores.
       Como dissemos, as obras associam-se umas às outras, há um sistema referencial que é fundamental para se proceder à caracterização dos estilos. Assim, cada obra não só exemplifica o seu estilo como remete por alusão a outras que se integram no memo estilo. É possível detectar em obras diferentes certas propriedades estilísticas comuns e outras não. 
       VIII) Para concluir, citemos mais uma vez Carmo d´Orey, que, a partir de  exemplos, nos esclarece a  relação referencial que uma obra de arte tem com o seu estilo: " Essa relação é a de exemplificação. O estilo é uma propriedade complexa, subdivisível em várias componentes que podem ser função quer do que a obra representa quer do que exprime ou exemplifica ou alude. O Velho Guitarrista  exemplifica o chamado " período azul " de Picasso, o qual se caracteriza pela representação de personagens miseráveis, pela expressão de tristeza e solidão e pela exemplificação de cores  azuis,  formas   angulosas   e   composição   na   vertical.  A  Guernica exemplifica um outro estilo de Picasso, caracterizado por outras propriedades". 
       Como conclusão, resta-nos dizer que o presente trabalho resulta da análise da obra de Nelson Goodman, Modos de Fazer Mundos, mas fundamentalmente  da leitura da dissertação de Carmo d´Orey, que a este autor dedicou um longo trabalho de pesquisa e investigação.
       O tema escolhido por nós  foi o estatuto do estilo, mas reconhecemos que é na compreensão global da filosofia da arte de Nelson Goodman que qualquer conteúdo sobre a problemática estética ganha profundidade e rigor.
       O grande contributo de Goodman para a tentativa de definição do estilo em arte está em recusar os tradicionais dualismos, que foram referidos, e que se aceites bloqueiam a compreensão de algumas manifestações artísticas, como é o caso da arte contemporânea. Por outro lado, a noção de  exemplificação é determinante, pois é ela que nos esclarece que as propriedades de estilo, como formais, são propriedades  exemplificadas (propriedades que uma  obra de arte revela na sua relação simbólica), além de podermos estender este conceito, como instrumento operativo de análise, a todos as áreas da  produção estética, superando os problemas específicos de cada uma. 

 Carlos Frazão

Outubro/1998

                                                                                                                              
                           BIBLIOGRAFIA 

ARGAN, G., " Arte e Crítica de Arte " , trad. port. de Helena Gubernatis, Lisboa : Ed. Estampa, 1995.
GOODMAN, N., " Modos de Fazer Mundos " , trad. port. de António Duarte, Porto : Edições Asa, 1995.
OREY, C., " A Exemplificação na Filosofia da Arte de Nelson Goodman " , Dissertação apresentada à Universidade Clássica de Lisboa para obtenção do grau de Doutor em Filosofia, Lisboa, 1992.
WEST, C., " Nietzsche e a Filosofia Americana Pós - Moderna ", in Crítica, nº 9, trad. port. de Jorge Costa, Lisboa : Ed. Terramar, 1992.
N. GOODMAN, Modos de Fazer Mundos, tr. port., Porto: Edições Asa, 1995, p. 38.
C. d´OREY " Introdução " , in N. Goodman, Modos de Fazer Mundos, op. cit. , p. 7.
Ibid., p. 8.
N. GOODMAN, Modos de Fazer Mundo, op. cit., p.43.
C. d´OREY, A Exemplificação da Arte de Nelson Goodman, Lisboa: 1992,

NOVOS ALIENADOS 


"A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”
Karl Marx

Na análise política a dificuldade que encontro é do plano dos significados, porque, confesso, há um excesso de significantes que perturbam a inteligibilidade dos acontecimentos. Só por si, o facto mereceria uma profunda reflexão. Na outra margem, o problema é a construção, é na construção de um discurso que a realidade se organiza. Por aqui não me parece que haja solução. Não o há no excesso de um sentido que se tornou unívoco e esboroa-se qualquer alternativa de significados. Melhor, a própria possibilidade de pensar no exterior dos dispositivos instituídos tornou-se refém da sua nulidade. Não se sabe já pensar de “outro modo”, qualquer linguagem é repetitiva e organizativa de poderes que actuam numa rede complexa sem previsibilidade de fuga. Parece-me – e sendo coerente, talvez o que me parece seja uma ilusão -, o discurso político é hoje, como nunca o foi, o reconhecimento de um movimento centrípeto que elide as diferenças e as alternativas. Todo o organismo faz parte integrante de um corpo holístico que põe a funcionar o regime democrático como ele deve funcionar para não ser questionado na sua lógica mais profunda, nos seus princípios de garantia, cada vez mais tidos como da ordem da “natureza das coisas” e não das circunstâncias, das experiências, das práticas, estas sempre produto do fluxo criativo das contingências e circunstâncias. O discurso mais dominante – há vários discursos dominantes – procura ontologizar as análises, as soluções, os objectivos, atribuindo-lhes um logos universal, reflexo espelhar de uma realidade inexorável, inexoravelmente política, porque a-politicamente inexorável. É necessário, pois, ir mais longe numa certa denúncia desta anomia vigente. Se há órgão do corpo social que se queira apresentar como melhor exemplo do que é ser a-político, a busca não é pelo desinteresse dos cidadãos por tal. O que constitui, para sua própria sobrevivência, a verdadeira expressão da fuga à política – “a miséria da política” – são os governos. Estas entidades são hoje excrescências assumidas da “coisa pública”, tudo por elas pode passar, menos o “acto político”. Daqui decorre uma ameaça, desde logo no plano da intervenção cívica, dos discursos de confronto, da produção de práticas de transformação do real. Pergunto-me se há verdadeiras oposições a estes dispositivos de poder, ou se toda a oposição, ou aparente oposição, se entrelaça numa dinâmica de perda progressiva, também ela, de experiência política e de emergência de práticas e conceitos que ameassem de facto romper a referida anomia social. Quanto mais os governos forem capazes de criar redes de cumplicidades adversárias no seu funcionamento meramente formal, mais o discurso se atomiza na redenção a-política, na "normalidade", por efeito de uma catarse que libertou a sociedade da “miséria da política”. Se este for o caminho da sociedade dos novos alienados, tudo o que podemos esperar é o regresso, numa versão sofisticada e tecnológica, do pior que a humanidade foi capaz de produzir ao longo da sua história.


Carlos Frazão