segunda-feira, 14 de outubro de 2013

 
As Relações entre a Arte e a Moral em Fernando Pessoa
 
 
Carlos Frazão
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 Não meu, não meu é quanto escrevo.
                                          A quem o devo ?
                                          De quem sou o arauto nado ?
                                          Por que, enganado
                                          Julguei ser meu o que era meu ?
                                          Que outro mo deu ?
                                                                                                                                                                      Fernando Pessoa
 
 
 
 
 
                                                                      INTRODUÇÃO
     
 
     O presente trabalho tem um alcance muito preciso que é, simultaneamente, a sua circunstancial limitação. A nossa proposta centra-se na actividade crítica de Fernando Pessoa - concretamente, os seus escritos a propósito das relações entre arte e moral - e não o Pessoa Poeta, cuja análise imprimiria uma dimensão que por agora nos escapa. Contudo, o que desde logo emerge como ideia central é a completude de uma sensibilidade imagística e reflexiva, enquanto criadora e crítica do acto poético. " Em todas as suas páginas persiste a grande alma do autor, uma alma ávida das alturas, estimulada pelo mais incondicional dos entusiasmos pela arte e pelos interesses do espírito ".
      Ler Pessoa é penetrarmos num universo marcado por uma genialidade complexa, confrontando-nos com uma obra, na sua unidade e pluralidade, que constitui um permanente desafio de perturbação para o seu leitor. Perturbação vivida na luminosidade que obscurece e na obscuridade que ilumina. Como nos diz Eduardo Lourenço: " Antes mesmo de saber com o máximo de plenitude o que os poemas de Pessoa são, aparecem-nos originalmente como a luz na qual nos é dado ver o que até eles não víamos ".
      Há em Pessoa uma forte necessidade de libertação literária, um desejo de estilhaçar quaisquer limitações temáticas ou formais. Influenciado pelo Simbolismo, superou-o na tentativa de aprofundar as virtualidades poéticas do uso da língua, traçando novos campos de exploração estética e literária, sobretudo na sua primeira fase, a modernista. O subconsciente, o inconsciente, a interioridade indecifrável, constituem a motivação para nomear uma realidade sugerida por imagens e símbolos.
      A crítica social  que  percorre  o  Realismo   é deslocada  para  um  outro  nível, para a dramaticidade de um " eu " face ao mundo. A consciência abre-se a si mesma, descobrindo uma sensibilidade que pensa ou um pensamento que sente ("O que em mim sente está pensando "). A tensão poética não descura  " o aperfeiçoamento do mundo exterior " -, mas centraliza-se privilegiadamente nas relações  eu / mim mesmo  ou  eu / criação estética.
      Pessoa é um personagem universal e a  sua  universalidade  é desdobrável.  O  " eu " fragmenta-se, melhor, des-substancializa-se numa pluralidade levada quase até ao impossível, ao infinito. Esta interioridade múltipla, onde convivem diferentes personae, é um jogo de criação de vozes, de relações labirínticas (de vários matizes onde confluem personalidades sem nome, o intelectual e o místico, o intuitivo e o astrólogo, o ocidental e o oriental), que exprimem um horizonte ontológico, psicológico e cultural para melhor entender o Homem, o mundo e o processo estético de criação.
      Poderíamos ser tentados a reconhecer no Pessoa ortónimo a unidade psicológica e nos heterónimos,  Álvaro  de  Campos, Ricardo  Reis,  Alberto Caeiro (entre os principais), simples manifestação da mais vulgar pseudonímia. Contudo, essa seria uma tentação ilusória. " Com efeito, a heteronímia não se distingue da pseudonímia como o mais do menos. Há entre elas uma diferença de estatuto, por conseguinte, de significação. O autor não esconde um mesmo texto sob nomes diferentes: ele é vários autores apenas e na medida em que é vários textos, isto é, textos que exigem vários autores. Tem sido o exame desta famosa heteronímia e da sua significação enquanto modelo espectacular da história da consciência moderna o que sobretudo tem interessado a mais estruturada exegese de Fernando Pessoa " .
      O que decorre do fenómeno da heteronímia tem, pois, um alcance que não se circunscreve a uma mera curiosidade literária. É um facto, unanimemente aceite, que não há na nossa história literária uma tão profunda e original interioridade plural, assumida na indistinção ficção/realidade ou heteronímia/ortonímia. Pessoa é um espaço de inscrição de uma multiplicidade poética onde coabitam vários poetas nele e fora dele mesmo. O " eu " já não é a "res cogitans", realidade ou substância permanente e imutável, identificado como o fundamento do saber e da verdade. A essa unidade, a esse substrato fixo que a reflexividade revelou como a ideia mais clara e mais nítida, Pessoa introduz uma fractura que nega toda a substancialidade ao sujeito, encarando-o como um lugar ficcional, uma rede de sensações e impressões, palavras e inteligência.
      Na viragem do século XIX para o século XX, Fernando Pessoa é o  representante de uma estética nova, estética que entra em ruptura com os códigos e os valores artísticos tradicionais, apelando para a dimensão irracional do homem que recusa a liguagem baseada na mediação do logos. O expressionismo na pintura e o dodecafonismo na música (Schonberg), por exemplo, traduzem a busca de vias originais de expressão e de definição do belo (ou mesmo a sua recusa), a  partir de um processo que é mais de desconstrução do que de construção.
      Se  a  "teoria da relatividade", a  "mecânica quântica"  e  a  queda dos "absolutos matemáticos" provocaram uma revolução epistemológica, também as formas plásticas e artísticas foram objecto de uma subversão.
      Todo o século XX não apagou os traços ou os vínculos de uma crise da racionalidade que se foi esboçando ao longo da sua primeira metade. Vivemos o fim das certezas racionais, não só no domínio da ciência, condenada à plausibilidade e ao indeterminismo, mas também no domínio da axiologia e da arte, caracterizadas por incessantes transformações e descontinuidades. Todas as formas tradicionais da linguagem estética se esboroaram. A definição da beleza é, sobretudo, um projecto “vazio", que se preenche na conflitualidade complexa das múltiplas expressões artísticas.
      A reformulação das normas do discurso científico, dos valores estéticos e das práticas culturais em geral, colocam no eixo do pensamento ocidental uma concepção de razão doravante privada de fundamentos insuspeitos.
      A obra de Fernando Pessoa, feita no anonimato (foi necessário esperar pela geração da Presença para que fosse iniciada a sua autêntica reabilitação face ao público e à maioria da crítica), constitui um permanente desafio que colocamos a nós mesmos e a ele próprio, um pretexto para a aventura de um "drama em gente". No fundo, um anónimo trágico que "exigiu os títulos de glória e não os achou. É no mais simples sentido da expressão um marginal, um habitante do deserto que cresce quando as ilusões que permitem viver naufragam. É esta nudez abrupta que muitos acham intolerável e puro niilismo gratuito ou injustificável. Mas é por ela e nele que o amam os que vêem nessa nudez a forma suprema e nunca mais ultrapassada em nossas letras da recusa da figura do mundo, da história e da existência tal como um homem da primeira metade do nosso século, profeta e lúcido, a ressentiu em sua carne e seu espírito"


             I   A OBRA CRÍTICA NAS PÁGINAS DE ESTÉTICA
                              (Breves considerações)
    
 A actividade crítica do autor da Mensagem, e em geral a sua produção em prosa, não mereceu uma atenção especial por parte de um grande número dos seus exegetas.
      G. Lind, editor e prefaciador das Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, é uma excepção a essa tónica, que teve, nas novas gerações, comentadores interessados na revelação do Pessoa Doutrinador, doutrinador enquanto se moveu na urgência de assimilar à produção poética reflexões sobre arte e estética, estendendo a sua curiosidade por outros fenómenos da actividade espiritual humana.
      As Páginas têm a vantagem de nos revelar a turbulência de um génio em diálogo consigo mesmo, estabelecendo hierarquias, definindo gostos e opções, buscando juízos que esclareçam a inteligibilidade do(s) mundo(s). É assim que sabemos que a música, a literatura e a filosofia são artes cujo fim é influenciar; que a pintura visa agradar; que sentimento, cor e forma são os três elementos essenciais da poesia; ou que " a ciência descreve as coisas como são; a arte descreve-as como são sentidas, como se sente que são ".
      Sabemos também do seu apreço pelo paganismo e pela cultura clássica grega em geral (de que faz uma interpretação própria), procurando o ponto de conciliação entre a inteligência, a emoção e a imaginação. Em oposição ao culto e à radicalidade  do " eu " dos românticos, reclama o gosto por essa antiguidade helénica, por uma estética da objectividade, da impessoalidade, capaz de atender às exigências da poesia e da estética modernas. Um dos princípios " da arte é a universalidade. O artista deve exprimir, não só o que é de todos os homens, mas também o que é de todos os tempos. O subjectivismo cristista, além do erro pessoalista, produziu esse outro erro, a preocupação de interpretar a época. A frase de Goethe, bastas vezes citada sobre o assunto, é de mestre; com efeito, "um homem de génio é da sua época só pelos defeitos. A nossa época deduz-nos da humanidade. Como o artista deve procurar erguer-se acima da sua pessoalidade, deve procurar levantar-se fora da sua época "
      A personalidade de Pessoa revela-se, ainda, na admiração que nutria por criadores como  Shakespeare, Dante, Milton, Goethe, Homero, ou Quental e Cesário Verde (o mestre de Álvaro de Campos). Se aprecia, não sem reservas, os românticos ingleses, não tem grande entusiasmo pelos românticos e simbolistas franceses.
      O que nos parece de realce, é que o Pessoa crítico nunca deixou de se rever naqueles que mais tocavam a sua sensibilidade e a sua existência. Lendo os outros era a si mesmo que se lia, o " eu "  era o " outro ", num jogo de espelhos indefinível. A referência sistemática a Shakespeare é desse processo o melhor exemplo, como se Pessoa se sentisse um personagem inventado pelo criador de Hamlet.
      Gostaríamos, antes de nos limitarmos à analise do texto em questão, de fazer referência a mais alguns aspectos que nos surgem como essenciais na avaliação das Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias.
      Em primeiro lugar, esta obra  deverá ser objecto de uma avaliação mais global, que a articule com os textos das Páginas de Doutrina Estética (reunidas por Jorge de Sena, 1946 ) e com os das Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Jacinto do Prado Coelho alerta-nos para a necessidade deste trabalho de intertextualidade, ao mesmo tempo que refere: " Não causarão estranheza certas flutuações e até contradições, explicáveis por  essa mesma elaboração imperfeita, pela complexidade dos objectos sobre que incide a reflexão do Autor, pelo facto de os textos pertencerem a diferentes fases da sua vida (repare-se: tendo sido adoptado, na arrumação dos fragmentos, não um critério cronológico mas sim um critério temático, aparecem contíguos ou próximos fragmentos muito distanciados no tempo), enfim, pelo facto de as anotações de Pessoa poderem corresponder a diversos momentos dum processo dialéctico de captação do real, porventura em diálogo interior, em diálogo cujas falas poderiam ser atribuídas a diferentes personagens. Apesar de, no conjunto, ressaltar neste volume a unidade duma orientação mental, diria até dum pensamento estético-literário, com as suas preocupações dominantes e as suas ideias-mestras, "o certo é descobrirmos ainda sinais do desdobramento em heterónimos "
      Efectivamente, o fenómeno da heteronímia não se confina à actividade poética. A despersonalização e a simulação têm um alcance mais amplo. A Mora, helenista e pagão, entra em cena para ser outra personalidade outra no confronto das suas ideias e reflexões  com as ideias e reflexões de A. de Campos. Múltiplos heterónimos configuram uma personalidade sem centro, plural, aberta, indeterminável.
       Não se coloca aqui a questão, levantada por muitos e pelo próprio ( talvez ainda um  jogo  de  simulações ),  de  estarmos  perante  factos  de  natureza  psíquica ( Fernando Pessoa levantou a hipótese de sofrer de uma histero-neurastenia ). Julgamos não ser esta, como já o demos a entender, a melhor via para compreender a complexidade do problema em causa. Trata-se de uma des-personalização porque se trata de uma des-substancialização do sujeito, reconhecido como figura onde ocorrem pulsões que o próprio não domina mas que o domina e determina. Pensamos que a leitura psicanalítica poderá prestar contributos válidos a este terreno, quando se refere à fractura do " eu ", ou quando identifica vários níveis no psiquismo humano. Mas não só. Há toda uma tradição filosófica relativa à des-centração do sujeito, de Marx a Nietzsche, passando por Freud, evidentemente, ou pelos pragmatistas americanos, ou por Heidegger e Wittgenstein. Pessoa assumiu em acto criativo uma existência incontornável e fatalista, até às últimas consequências. Assumiu querer ser tudo e todos ao mesmo tempo.
      Após estas breves considerações, inflictamos para o texto de Pessoa, com as limitações resultantes de nos fixarmos nele, mas movidos pela curiosidade de penetrar no interior de um pensamento analítico ao relacionar a arte e a moral.


                           II   O TEXTO (ARTE E MORAL)
     
    1. Arte e prazer
    
      Pessoa esboça e estabelece uma hierarquia das artes, quanto ao fim que preconizam. A arte pode entreter, como a dança, agradar, como a arquitectura, ou influenciar, como a música e a literatura.
      Agradar é dar ao que é útil uma dimensão estética de fruição, sem descurar a finalidade última a que se destina. A arquitectura tem um duplo estatuto, vai ao encontro de necessidades práticas e torna a sua utilidade um objecto em si de prazer artístico. Influenciar significa, por seu turno, o que é perene, o que passa civilizacionalmente de geração em geração, o que fica como magma da herança colectiva das sociedades e das culturas. O artista influenciador tem consciência de cumprir a missão de transmitir aos epígonos o que em cada época é mais elevado, valorizando o " património espiritual da humanidade ", em detrimento da glória e das honras pessoais.
      Independentemente dessa classificação, ou talvez não, toda a arte visa provocar prazer. " O tipo de prazer é que varia. A arte inferior dá prazer porque distrai, liberdade porque liberta das preocupações da vida; a arte superior menor dá prazer porque alegra, liberdade porque liberta da imperfeição da vida; a arte superior dá prazer porque liberta, liberdade porque liberta da própria vida " .
      A arte é " divinização da existência ", como dizia Nietzsche. Liberta porque abre  para uma ordem harmoniosa, para um espaço de embelezamento da vida e de estetização do humano. O supremo da arte é o prazer que sente aquele que, movido pela transfiguração e pela emoção estéticas, se eleva para dentro, libertando-se dos estreitos limites que a vida concreta propicia, acima da fealdade de um real vulgar, alcandorando-se a superar o que é imperfeito  e a perseverar no ser.
      Se o prazer é ínsito, pregnante à afirmação da arte, à sua contemplação e fruição, não é a sua finalidade última. O prazer estético é um meio para que o homem se transcenda a si mesmo, se supere, se eleve por intermédio do que a arte pode proporcionar  à existência: a manifestação da beleza.
      A este sentido da finalidade da arte, se associa, numa dimensão mais ampla, a filosofia, que visa elevar através do conhecimento, a ciência, que busca a elevação na procura incessante da verdade, e a religião ("Uma religião sem Deus - uma religião puramente do homem, cuja base seja a benevolência e a bondade, em vez de a fé e a crença "), por acção do bem.
      Mas, "elevar e libertar não são a mesma coisa. Elevando-nos, sentimo-nos superiores a nós mesmos, porém por afastamento de nós. Libertando-nos, sentimo-nos superiores em nós mesmos, senhores, e não emigrados, de nós. A libertação é uma elevação para dentro, como se crescêssemos em vez de nos alçarmos ".
      Esta distinção pessoana configura a ideia de que o estatuto ontológico do homem é o de um ser que se faz, que se transmuta, reposicionando-se num processo dialógico face ao mundo, para ser continuamente um outro superior, mais perfeito. O belo, a verdade e o bem são as condições de um projecto "puramente humano".


      2. A relação arte/moral 
     
     A propósito desta relação, acentue-se que o pensamento de Pessoa se integra dentro da mentalidade característica dos finais do século XIX, início do século XX. Contra o prognóstico de Hegel que anunciara a morte da arte, vive-se uma época que procura reabilitar o Belo, dando-lhe uma perspectiva mais relativa e contingente, em oposição à teoria do belo único e absoluto, ao mesmo tempo que, circundando o âmbito ético, impõe um campo extra-moral. De Baudelaire a Nietzsche, a estética, a arte e o belo não deixam de ocupar um lugar de destaque.
      Ao privilégio conferido à arte, associa-se a ideia da verdadeira autonomia do criador, que defende a sua liberdade e impõe o seu estilo. É no limiar do século XX que nasce o artista moderno, independente dos favores de qualquer mecenas que patrocine a sua obra, à maneira do século XVIII, como no caso de Mozart, mas também a crítica e a sociologia da arte alcançam um estatuto novo no plano da constituição dos saberes.
      Pessoa identifica-se com essa autonomia e liberdade do artista. E reclama-as invocando a própria idiossincrasia do criador e da arte. A independência implica, como o dissemos, que a arte não tem que ser, enquanto finalidade a que se dirige, moral ou imoral. O contrário seria introduzir um elemento espúrio que adulteraria o estatuto da criação. Não há, pois, relação "strictu sensu" entre a arte e a moral.
      Analogamente, também não há relação entre a arte e a ciência. É certo que ambas são produto do pensamento e tendem para a universalidade. Pessoa recusa a dicotomia arte/ciência pela oposição subjectividade/objectividade. O que as distingue não é o factor pessoal, a individualidade, mas um carácter com outra dimensão. Aquela o que procura é criar, produzir  o seu objecto como foi sentido, como o sentimento o expressou, dar-lhe vida sugerindo a realidade. Esta o que procura não é a impressão mas a interpretação da realidade. " (...) Interpretar é o papel da ciência. A ciência procura compreender uma coisa por meio das outras, interpretar uma série de fenómenos por meio de todas as outras séries de fenómenos. ( que para isso sirvam ). A arte procura reproduzir sem interpretar (  daí o  contraste  vulgar entre o génio e a  " inteligência fraca " de certos homens superiores ) ". Por outras palavras, a ciência e a arte são invenções humanas que procedem do instinto intelectual ( a invenção resulta da união do instinto, que é a coordenação genial dos meios e dos fins, com a inteligência ), ora com valor de verdade a que se submete no confronto com os factos, ora com um valor absoluto na intensidade da verdade que cria, respectivamente.
      Mas se não há relação entre a arte e a moral quanto ao fim, o mesmo não se pode afirmar quanto ao conteúdo.
      Pessoa afasta-se das concepções genealógicas da moral dum Nietzsche, para quem a ética, reduzida às suas condições psíquicas, é um mero jogo de instintos e pulsões. A moral reflecte uma situação de vazio face à vida, de ressentimento, de culpa, de ódio por si próprio. O pensador livre está para além do bem e do mal. Pessoa, contrariamente, vê na moralidade um ideal, presente em todas as épocas, com excepção dos períodos de decadência que, embora não a persiga como ideal, não deixa nunca de lhe reconhecer esse valor de idealidade.
      Formuladas as premissas segundo esta perspectiva, e se a arte procura agradar e influenciar (são duas das suas regras), então não pode infringir, quanto ao conteúdo, as normas morais aceites, como, aliás, não pode violar  a  noção  partilhada  da  verdade. " Um poema que canta, elogiando o roubo, não fará um bom poema; nem o fará um poeta moderno a quem lembre cantar o curso do sol à volta da terra, que é uma coisa falsa. (...) Agradará a mais gente um poema que, sobre ser belo, seja moral, que um que, sendo belo, seja imoral. E como é improvável que um grande artista, por isso mesmo que é um grande artista, falseie a verdade, é improvável que falseie a moral. Não pertence esse característico aos de um cérebro típico de criador "
      Pessoa tem um discurso  que  se  organiza  de  um  modo,  diríamos, silogístico. Traduz a necessidade de repensar os problemas de acordo com uma argumentação que se estrutura a partir de afirmações sucessivamente relacionadas. Trata-se de um pensamento exaustivo.
      Assim, a questão da arte independente da moral é explicitada ao longo de vários textos, de diferentes datas, para que não subsistam dúvidas quanto às intenções das suas posições, num processo que é também de auto-esclarecimento.
Se a arte é moral ou imoral não é um problema que possa ser esclarecido pela estética. É um equívoco pensar o contrário. " Têm errado aqueles que têm querido achar uma razão, dentro da própria natureza da arte, para a arte ser moral ". Os juízos estéticos dizem respeito apenas à avaliação do sentido e das normas da beleza artística. Ora a expressão artística, a arte em geral, tem como finalidade a produção de beleza. São as categorias estéticas, e não as éticas, que facultam a apreciação de uma obra de arte enquanto objecto de fruição estética. A moral é, por conseguinte, exterior e independente desse juízo que se possa formular. Pretender submeter a arte a considerações de ordem moral, é deslocar a questão para outro âmbito. Para onde? Para a moral. Mas se arte não tem, repita-se, por fim a moral, ela pode, efectivamente ser ou não ser moral, no sentido em que vimos. E ser ou não ser moral é um princípio de dever ser. Ou seja, a arte deve ser moral e não imoral pela  moral  ( não pela estética ). É que " as épocas têm mais de comum as suas ideias morais que as suas imoralidades. (...) A tendência moral é reconhecida pela espécie (?) humana como superior à realidade (?) imoral. O poeta imoral corre portanto, na proporção em que é imoral, o risco de não influenciar os espíritos superiores  ( quando não da sua época, porventura decadente ), das outras épocas pelo menos “.



     3. A arte: feição puramente artística/feição social
     
     A arte tem duas dimensões, ou feições. Uma, como resultado da sua própria natureza, é " puramente artística " . Puramente, porque a beleza que cria não depende das opiniões, dos gostos, das avaliações consensuais. Mais, a arte nunca suscita unanimidade. Estabelece, não raramente, rupturas nos juízos dominantes. Provoca dissídios numa época para ser aceite noutra. A sua independência  reside  neste  facto, " nenhum outro fim tem que a criação da beleza, sem outra consideração moral ou intelectual ".
Mas, inevitavelmente, a beleza cria-se em sociedade, não para ela como finalidade, mas nela como realização, como acto. Simultaneamente, impõe um público, como decorre do que dissemos, provocando apreço ou rejeição. Daí, a sua outra dimensão, a feição social.
Pessoa atribui ao artista um triplo estatuto, como seja: o artista em si, o artista para a sociedade e o homem. Esta caracterização elucida-nos, com rigor, a teoria sobre as relações entre a arte e a moral, que temos vindo a tentar expor.
O artista em si perde toda a pessoalidade, o sentimento estético é impessoal e objectivo. A sua única responsabilidade é criar, autonomamente, a beleza. O compromisso que tem é perante a arte, o vínculo é a estética com as suas leis. A este nível, o criador é como que uma abstracção que se concretiza na busca do belo que produz, confundindo-se com ele para já nada ser de si. O artista em si é a arte em si. Não poderá ser esta uma interpretação possível para entendermos que " o artista tem de nascer belo e elegante, pois o adorador da beleza não deve ser feio ele próprio. E é seguramente uma dor terrível para o artista não lograr descobrir em si mesmo aquilo que forceja por alcançar. Quem olhando para os retratos de Shelley, Keats, Byron, Milton e Poe, pode interrogar-se se foram poetas ? Todos eram belos, (...) todos tinham o gozo celeste (...) " de o serem ?
Mas o artista, como sujeito social que é, vive em sociedade e, pelo facto, tem como único fim agradar. Aqui confronta-se com um duplo sentimento. Pretende agradar porque quer que a sua obra tenha um público e seja por ele admirada. É um sentimento pessoal de ver reconhecido o seu mérito e valor. Contudo, o sentimento impessoal não deixa de estar presente, porque o agrado que visa obter é o que decorre da beleza que criou, e esta é, como vimos, puramente artística. O criador ao produzir a sua obra não tem em mente a humanidade, não se sente condicionado pelas regras do sucesso   ou  do  insucesso.  Apenas  a  atitude estética  o  determina.   A  beleza  des-personaliza, o público a que se pode destinar numa fase ulterior e o próprio operário  que  a construiu  ( operário, no sentido de que  " a obra de  arte  é primeiro  obra,  depois obra  de arte ". ) A impessoalidade é sempre um  "a priori" face  à pessoalidade. Tal  não  significa  atribuir à beleza um carácter de essência, de objectividade  des-contextualizada. Pessoa fala das nossas noçôes de beleza, o que, desde logo, confere a consciência que tem da historicidade dos valores. O que está em causa é a relação entre o criador e a obra criada, cuja lógica é regulada apenas pelas categorias estéticas.
O artista em sociedade é artista, é o seu ofício social, e é também homem como todos os outros homens. A finalidade agora (enquanto homem) é obter glória, um sentimento inteiramente pessoal e interpessoal, porque é um desejo partilhado por todos.
Agradar e obter glória transcendem o campo e  as leis da estética, resultam da dimensão social do artista e da arte que veicula uma mensagem. Nenhuma  obra  é apreciada por um público (condição para o agrado e para a glória, não para a criação) que atenda exclusivamente a critérios estéticos. " A natureza da humanidade é uma só, não se divide em estética, moral, intelectual, etc. (...) o amor da beleza é fundamental na sua alma - é arte;  mas não só isso reside nela, não só com isso critica e aprecia. Outros elementos entram inevitavelmente nessa apreciação. Um grande poema revolucionário agradará mais a um republicano do que a um conservador, admitindo em ambos, quanto a qualidades críticas, a mesma dose de estética. Os homens não apreciam só esteticamente, apreciam segundo toda a sua constituição moral. Por isso cousas grosseiras, impuras, lhes desagradam, não na parte estética neles, mas na parte moral que não podem mandar embora de si ".
Toda a obra de arte é um objecto da cultura, constituindo a experiência estética uma das vivências do ser humano, uma das suas formas de relacionamento com a realidade. A obra divulga-se, difunde-se, expressando não apenas o sentimento interior do seu criador, mas também  comunicando uma informação sobre o mundo ( humano). A ciência escolhe, no todo da experiência humana, os elementos quantitativos, mensuráveis mediante instrumentos e susceptíveis de serem interpretados por uma teoria matemática. Só à custa desta redução pode o conhecimento científico suscitar um consenso universal. Mas a beleza é igualmente um elemento presente na cultura humana e a arte possui os seus próprios meios de verificação adequados à sua natureza. Arte e ciência são invenções e têm um público. Um teoria científica não é uma mera descrição de " coisas ", mas uma invenção criativa  com a marca do paradigma que a fez emergir e do contexto cultural em que surgiu.
Mas voltando à relação entre a arte e  a moral, que Pessoa procura explicitar,  uma reflexão se impõe que debata o que está em causa sobre a arte imoral. Não, propriamente, pelo lado da arte (  " o problema estético da ética, se assim lhe podemos chamar, ou, formulando-o ao invés, o problema ético em estética ". ), mas pelo lado do público que a consome.
       
  4. Um problema em análise: a arte imoral
    
     A análise de Pessoa incide sobre um problema concreto: a pornografia.
    Num primeiro nível, o autor interroga-se sobre a legitimidade das autoridades competentes intervirem, cerceando  e controlando a produção literária e artística no sentido de evitar a eventual influência  negativa  que  pode  ser exercida sobre o público consumidor. Havendo legitimidade, deveremos, seguidamente, interrogar-nos acerca da sua viabilidade prática. Contudo, este aspecto, refere o autor, " é muito secundário ".
     Colocado o ênfase na literatura, Pessoa desenvolve o seu raciocínio a partir da distinção entre a " literatura propriamente dita " e os " escritos meramente obscenos ". O critério estético surge como essencial para legitimar qualquer intervenção aceitável. A ética não pode prescindir da apreciação estética, sendo, neste caso, por esta determinada. É que há textos cujo conteúdo é declarada e intencionalmente obsceno, não tem outra finalidade. Por outro lado, existem obras de produção literária em que a presença de elementos obscenos não é um fim em si mesmo, mas fazem parte integrante, de um modo implícito ou explícito, de uma estrutura mais ampla que se caracteriza pela sua qualidade marcadamente artística e literária  ( parece-nos similar o fenómeno da violência na filmografia contemporânea, onde é possível reconhecê-lo como acto simplesmente gratuito e mesmo apologético, ou como expressão dissolvida num contexto crítico com outras intenções ). Diz-nos Pessoa: " é uma questão de grau. Há obras palpavelmente obscenas e nada mais, sem nada de literário, como os folhetos (...) e que correspondem na forma escrita às fotografias obscenas (...). E há no outro extremo produtos como "Venus and Adonis", como tantas obras clássicas, tanto em verso como em prosa; a dificuldade é maior quando nos encontramos perante grandes obras de arte que são não só imorais mas fazem francamente a apologia de qualquer espécie de imoralidade ".
      A actualidade de Pessoa está em centrar o problema no público, o que implica uma classificação própria, sem a qual, " não se pode derramar qualquer luz sobre esta discussão ". Não pretendemos dizer que estamos perante uma teoria da comunicação. Estamos tão só perante algumas reflexões a que não escapa a importância de uma fenomenologia do público e da comunicação. Foi necessário esperar pela segunda metade do século XX para se assistir a uma profunda transformação da cultura ( com  o triunfo dos meios de informação ), que definiu a humanidade como comunicação.
      Há vários géneros de público: o que não possui sensibilidade estética e artística, o inferior, e o que possui, o superior. Temos ainda o público adulto e o não-adulto.
Perante as grandes obras de arte, como a citada de Shakespeare, como reagem, enquanto leitores, estes diferentes públicos ?
     O primeiro, por falta de educação estética, ficará prisioneiro dos elementos imorais da obra, nada mais será capaz de apreciar. O efeito, mesmo depois da leitura, permanecerá, reduzindo o texto literário à influência sexual que ele lhe suscitou. Quanto ao público educado, o efeito inicial é similar. Mais, o leitor culto terá uma excitação mais intensa, pois sendo capaz de decompor as diferentes estruturas substanciais e formais que organizam a obra literária, sentirá com mais fervor e veemência a beleza que o autor, superiormente, foi capaz de criar para construir os elementos imorais e obscenos. Contudo, e aqui está o traço que distingue os leitores, o educado, " passada a excitação momentânea que a obra produziu, permanece antes sob a influência dos elementos artísticos ".
      Quanto ao público não-adulto, Pessoa caracteriza-o como o que não se pode defender, por oposição ao adulto, ou seja, as crianças.  Ora, curiosamente ou não, o público não-educado é comparado às crianças, isto é, também ele não tem condições para se poder defender.
      Definidos os vários tipos de públicos, voltamos à questão inicial: deve-se ou não proibir a venda e a divulgação das obras consideradas imorais ? Fazendo-o, é também a arte que atingimos. Pessoa conclui, defendendo que só às crianças e ao sector não-educado do público se deve limitar  os efeitos da proibição.
      Independentemente da terminologia pessoana aplicada à caracterização do(s) público(s), parece-nos de fecunda modernidade as reflexões do autor. Já o dissemos, mas não é demais insistir.
      Esta segunda metade do século é aquela em que triunfam os meios de informação. Assistimos a uma transformação profunda da cultura, doravante ligada a fenómenos de massas, o que significa que a comunicação aumenta, difunde-se, com tudo o que isso possa suscitar. Instala-se um novo enquadramento, em que os meios de informação desempenham um papel unificador. Entre as duas guerras, a cultura de massas surge como um factor de generalização, que não pára de prosperar. O género humano constitui um conjunto cada vez mais afectado pelas mensagens audiovisuais, exercendo um fascínio e uma sedução que atravessam o espaço e o tempo. Uma matriz cultural e pregnante transporta a comunidade humana para o universo da comunicação acessível e efémera.
     A sociedade industrial, de que a produção " em massa " é a imagem mais perfeita, impôs um determinado tipo de conteúdo e sentido à comunicação. De facto, as sociedades modernas da produtividade e da rendibilidade exigem comportamentos específicos aos indivíduos, definindo os modelos culturais necessários. Nesta comunicação cultural, os mass-media têm uma acção de massificação da cultura, anteriormente personalizada em função de gostos, interesses ou preocupações individuais. Assim, a nova cultura de massas tem por função a estandardização de maneiras de pensar, sentir e agir conformes aos códigos culturais vigentes na sociedade.
     Novos paradigmas se instalam nas práticas sociais, alterando e moldando as fontes de transmissão do saber. Se a rádio fez concorrência à imprensa escrita e o cinema adquiriu um verdadeiro desenvolvimento, a televisão, meio privilegiado de comunicação, " alterou o mundo ".
     São, precisamente, estes novos paradigmas que colocam hoje em equação a necessidade de repensar uma rede de fenómenos, de implicações múltiplas, e que passa por uma fenomenologia  e sociologia da comunicação. Uma teoria que tenha em conta o público a quem se dirigem as mensagens, o modo como estas são recebidas e interiorizadas pelos seus destinatários e os processos de mediação da comunicação, é um desafio que se tem colocado ao saber contemporâneo. Para citar apenas alguns, refira-se os contributos analíticos de Jacques Mousseau, Jean Cazeneuve, Edgar Morin ( a  "cultura de massas" ), Jean  F. Lyotard  ( " A Condição Pós-Moderna " ),  J.  Habermas ( A " Razão Comunicacional " ) e Karl Popper. Este último autor, em "A Lição deste Século", revela a sua preocupação por certas formas de violência ( no sentido amplo da expressão ) endémica nas sociedade modernas, a começar por aquela que exercem sobre os espíritos, insidiosamente, os meios de comunicação audiovisuais, nomeadamente a televisão. Popper atende, em especial, o efeito que esse meio de comunicação pode ter de negativo sobre o  público  infantil  ( e mesmo sobre camadas mais vastas de audiência,  ao cercear o sentido crítico e liberdade de pensamento ), chegando a propor um controlo sobre os  seus  "  abusos  e omnipotência ".
        Fernando Pessoa, considerando a sociedade do seu tempo, as particularidades conceptuais de uma modalidade de discurso e os instrumentos críticos e de análise, não deixa de estar presente numa problemática mais do que nunca hodierna, ele que foi: "da sua época só pelos defeitos ", ele que foi génio.


 

                                    BIBLIOGRAFIA


 PESSOA, FERNANDO, Páginas de estética e de teoria e crítica literárias,  Lisboa, Edições Ática, 1973.
COELHO, EDUARDO P., A letra litoral, Lisboa, Moraes Editores, 1979.
COELHO, JACINTO P., " Tópicos para uma leitura crítica ", em Fernando  Pessoa, Páginas de estética e de teoria e crítica literárias, Lisboa, Edições  Ática, 1973.
LIND, GEORG, " Reflexões acerca da estética de Fernando Pessoa ", em   Fernando Pessoa, Páginas de estética e de teoria e crítica literárias, Lisboa,  Edições Ática, 1973.
LOPES, ÓSCAR E ANTÓNIO JOSÉ SARAIVA, História da literatura  portuguesa, Porto, Porto Editora, 1979.
LOURENÇO, EDUARDO, Pessoa revisitado, Porto, Ed. Inova, 1973.
SARAIVA, ARNALDO, Encontros, desencontros, Porto, Livraria Paisagem,  1973.
SILVA, VITOR  M. AGUIAR, Teoria da literatura, Coimbra, Livraria  Almedina, 1979.







                                        Citações
 _ Fernando Pessoa, Páginas de estética e de teoria e crítica literárias, Lisboa, Ed. Ática, 1973, p. XI.
_ Eduardo Lourenço, Pessoa revisitado, Porto, Ed. Inova, 1973, p. 14.
_ Fernando Pessoa, op. cit., cap. I, nº 14, p.18.
_ Eduardo Lourenço, op. cit., p. 20.
_ Ib.,p. 201.
_ Fernando Pessoa, op. cit., cap. I, nº 3, p. 4.
_ Ib., cap. I, nº 15, pp. 19-20.
_Cf. Jacinto do Prado Coelho, " Tópicos para uma leitura crítica" , em Fernando Pessoa, op. cit., p.XVI.
_ Ib., pp. XVI-XVII.
_ Fernando Pessoa, op. cit., cap. III, nº 1, p.53.
_ Ib., cap. I, nº 19, p. 27.
_ Ib., cap. I, nº 21, p. 30.
_ Ib., cap. I, nº 17, p. 24.
_ Ib., cap. III, nº 2, p. 54.
_ Ib., cap. III, nº 3, p. 55.
_ Ib., cap. III, nº 2, pp. 54-55.
_ Ib., cap. III, nº 3, p. 56.
_ Ib., cap. VI, nº 1, p. 117.
_ Ib., cap. I, nº 13, p. 12.
_ Ib., cap. III, nº 3, pp. 56-57.
_ Ib., cap. III, nº 4, p. 60.
_ Ib., cap. III, nº 4, p. 61.
_ Ib., cap. III, nº 4, p. 63.
_ Ib., cap. III, nº 4, p. 63.
 
 
 
Dezembro de 1999 
 

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Novo Regime

Hitler, Mussolini, Franco, Cicciolina. Todos implementaram o seu de regime. Quer dizer secalhar a Cicciolina é capaz de não ter implementado. Mas enfim. Vamos dar conta de um regime surgido nos anos 70 e que passou despercebido à maior parte da população. Mas nós que somos atentos a essas situações pesquisamos e temos para vocês um regime ditatorial que afligiu muita gente: o regime meia pensão.
Este regime foi implementado por funcionários da indústria hoteleira que, secretamente, combinaram as directrizes desta nova forma de governação. Tudo começou, como o nome indica, numa pensão onde os funcionários estavam fartos de ter de dar pequeno-almoço, almoço e jantar aos seus clientes. Eles quiseram acabar com esses facilitismos para só terem de gastar dinheiro em queques e sumo de laranja. Rapidamente se reuniram na cave da pensão para decidir o nome do regime que começou por ser o pensionismo. Assim as vendas de arroz de pato embalado e de salmão fumado desceram e a febre deste regime alastrou-se ainda com o nome pensionismo. Foram hotéis, estalagens e motéis, entre outros estabelecimentos onde podemos levar alguém para fazer diversas coisas.
Enquanto todos se preocupavam em apagar o fumo que ainda restava de Woodstock este grupo de hoteleiros ia fazendo vítimas por todo o lado como podemos observar pelo seguinte depoimento deste popular escolhido ao acaso.
(Popular)
- Eu tinha marcado as minhas férias com direito a tudo e quando cheguei lá…(chora)
- Calma, tenha calma.
- Quando cheguei lá só tinha queques e sumo de laranja, mais nada. Foi terrível nunca me tinha acontecido nada. Fui reclamar com o gerente do hotel, mas não resultou. Só me puderam dar uma fatia de bacon.
De cliente em cliente chegaram ao Ritz e ao Sheraton e a outros grandes grupos hoteleiros. O pensionismo atingia o seu auge no Verão quando a indústria hoteleira se enchia de multidões que só depois viriam a saber que tinham sido burladas.
E perguntam vocês: então como é que se passou a designar meia pensão?
Quando houve uma grande explosão na pensão originária deste regime e ficou meia pensão pois a outra metade tinha ido à vida.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

                              JOHN SEARLE - VIAS PARA PENSAR A MENTE
 
Carlos Frazão




1.     Sentido e Intencionalidade
    
     " Em qualquer livro sobre filosofia da mente o autor, explícita ou implicitamente, tem uma visão geral da mente e da sua relação com o mundo natural. O leitor (...) não terá dificuldade alguma para reconhecer qual é a minha visão. Vejo o cérebro como um órgão como qualquer outro, como um sistema biológico. Sua característica específica, no que diz respeito à mente, é a característica em que ele  difere notavelmente de outros órgãos biológicos, ou seja, é a sua capacidade de produzir e manter toda a enorme variedade que constitui a nossa vida consciente ".
      Esta citação de J. Searle permite-nos situá-lo no âmbito das posições que tem assumido relativamente a uma filosofia da mente. A sua perspectiva " naturalista " leva-o a recusar tanto as formas de dualismo de origem cartesiano como o antimentalismo contemporâneo que se lhe opõe. Segundo Searle, os fenómenos mentais estão biologicamente fundados e estruturados: são causados pelos mecanismos cerebrais e realizados na estrutura do cérebro. A consciência e a intencionalidade dependem da biologia humana, do mesmo modo como a digestão ou a circulação sanguínea, isto é, " os estados mentais são fenómenos biológicos. A consciência, a intencionalidade, a subjectividade e a causação mental fazem todos parte da nossa história vital biológica, juntamente com o crescimento, a reprodução, a secreção da bílis e a digestão ".
      Numa obra de 1983, intitulada Intentionality An Essay in the Philosophy of Mind, é possível tomarmos contacto com as teses essenciais defendidas por Searle e, posteriormente, desenvolvidas pelo conjunto dos seus ensaios. Nessa obra, o autor elabora uma " teoria da Intencionalidade ", escrevendo o termo com maiúscula, com o objectivo de se afastar do sentido que a filosofia escolástica lhe atribuiu (intencionalidade significava a propriedade do pensamento ser sempre pensamento de um objecto que lhe é distinto; o mesmo conceito foi, mais tarde, reactualizado  por Brentano e pela fenomenologia de Husserl), fixando-lhe um novo conteúdo que recusa toda a concepção que coloque o sujeito na origem dos estados de consciência. Afastando-se da perspectiva subjectivista ou personalista, por   " Intencionalidade " pretende significar que a relação que o organismo estabelece com o mundo reside na capacidade biológica fundamental da mente. A partir daqui, Searle reconhece que esta mesma propriedade atravessa tanto os actos mentais como os actos da fala. A problemática do    " sentido de um enunciado " deve, pois, ser formulada de acordo com as relações entre mente e linguagem, ou seja, a análise do sentido deve orientar-se nos termos de comparação de ambos os actos.
      Segundo Searle, no caso dos estados mentais a questão do sentido não se coloca. A intencionalidade é inerente, intrínseca à capacidade representativa de uma crença ou de um desejo. Mas a questão é diferente no caso de um acto de fala. Uma frase - som ou marca sobre um papel - é um objecto como qualquer outro que pertence ao mundo físico. A capacidade de representar uma coisa não lhe é intrínseca, nenhuma frase é intrinsecamente intencional, a sua intencionalidade é derivada, deriva da intencionalidade da mente. O problema do sentido é, por conseguinte, a questionação relativamente ao processo pelo qual o homem atribui intencionalidade a entidades que não são intrinsecamente intencionais, isto é: como entender a intencionalidade derivada, como é que ela se estrutura? A resposta é suficientemente elucidativa para entendermos a hipótese de Searle : " Há quase duas décadas comecei a trabalhar sobre os problemas da filosofia da mente. Necessitava de uma explicação da intencionalidade, para proporcionar tanto um fundamento para a minha teoria dos actos da fala, como para completar a teoria. Do meu ponto de vista, a filosofia da linguagem é um ramo da filosofia da mente; por conseguinte, nenhuma teoria da linguagem está completa sem uma explicação das relações entre mente e linguagem e de como o significado - a intencionalidade derivada dos elementos linguísticos - está ancorado na intencionalidade  intrínseca, biológicamente  mais básica, da mente/cérebro " . O que fundamenta a capacidade dos actos da fala representarem coisas e objectos do mundo é uma extensão das capacidades fundamentais da mente humana, e aí poderemos identificar, entre outras, as crenças e os desejos, assim como a acção e a percepção. Tratam-se, efectivamente, de capacidades biológicas da mente (ou do cérebro) que permitem concretizar e incrementar as relações do organismo com o mundo.
      De acordo com a sua perspectiva naturalista, Searle propõe a " dissolução" do problema Mente-Corpo ou Mente-Cérebro, afirmando que a realidade dos fenómenos mentais deve ser apreciada segundo a sua natureza biológica e em função da especificidade do " mental ". Deste modo, deveremos aceitar como um princípio  óbvio a existência de estados de consciência qualitativamente subjectivos e intrinsecamente intencionais, provocados por processos biológicos a nível neuronal  (cerebral). Por seu turno, resulta também clara a indissociabilidade  da consciência e da intencionalidade, de modo que um estado intencional inconsciente só se entende enquanto acessível à consciência (é o que designa por princípio de conexão).

2.   O  "Pretendido"  Problema Mente-Corpo 
     
   Searle considera que o problema Mente-Corpo, isto é, a forma como a mente se relaciona com o cérebro, tem uma solução ("uma solução muito simples "). Esta assenta nos conhecimentos e nos contributos que a moderna neurofisiologia nos pode fornecer,  em conjugação com os dados mais evidentes que nos são facultados pela  natureza dos estados mentais, como as crenças, os desejos, as dores, ou a percepção. Contudo, uma incursão pelo campo da Filosofia, ou de certas áreas da Psicologia, e mesmo no âmbito da Ciência Cognitiva, é suficiente para depararmos com dificuldades que obliteram qualquer solução consentãnea para o problema em causa. Daí a interrogação de Searle: " Como é que tantos filósofos e cientistas cognitivos podem dizer tantas coisas que, a mim pelo menos, me parecem obviamente falsas? ". A resposta remete-nos para o contexto dos pressupostos e dos requisitos epistemológicos  e vocabulares que fundamentam essas posições teóricas. De facto, os problemas, as problemáticas, organizam-se sempre a partir de um corpo conceptual, que é fixado e configurado por um determinado tipo de discursividade. É no exercício de um uso da linguagem que as questões emergem e são pensadas. Ora, o vocabulário que hoje continua  a dominar o estudo dos fenómenos mentais remonta ao século XVII, logo é obsoleto e os seus pressupostos apresentam-se como falsos. Tanto o dualismo como o materialismo, que é actualmente prevalecente, não são respostas eficazes que possam contribuir para a elucidação do problema Mente-Corpo. " Os dualistas de propriedades pensam que o problema mente-corpo é assustadoramente difícil, talvez mesmo totalmente irressolúvel. Os materialistas estão de acordo em que se a intencionalidade e a consciência existem realmente e são irredutíveis aos fenómenos físicos, então  teríamos  realmente  um  difícil  problema mente-corpo,  mas esperam  " naturalizar "  a  intencionalidade  e  mesmo  a  consciência  também.   Por " naturalizar " os fenómenos mentais entendem reduzi-los a fenómenos físicos. Pensam que aceitar a realidade e a irredutibilidade da consciência e de outros fenómenos mentais nos compromete com alguma forma de cartesianismo, e não vêem como tal ponto de vista pode ser consistente com a nossa representação científica global do mundo " .
      Searle procura superar as duas doutrinas em confronto ( e que se oferecem a si mesmas como únicas alternativas ), visando, como objecto privilegiado de crítica, o materialismo dominante, que se afirma mais pela recusa das teses opostas, a que atribui um carácter anticientífico, do que propriamente pela convicção e coerência interna dos seus enunciados.
      A concepção materialista da mente subentende várias perspectivas (Searle enumera seis), tendo em comum o facto de negarem, ou pelo menos duvidarem, da existência dos fenómenos mentais, como a consciência, a intencionalidade e a subjectividade. Sucintamente, poderemos  identificar  algumas  modalidades,  como  o " materialismo eliminativo ", que recusa em absoluto qualquer fenómeno mental, ou   o  " funcionalismo ", que descreve a mente segundo relações causais que se estabelecem com base em inputs e outputs. Outra perspectiva, com alguns adeptos, recusa a existência da consciência, ou pelo menos, retira-lhe qualquer conteúdo subjectivo ou qualitativo, desloca os fenómenos mentais do plano pessoal  para um plano objectivamente observável de terceira pessoa. Contudo, a concepção que parece hoje suscitar maior entusiasmo é a que Searle denomina por  " IA forte ". Segundo esta visão, o cérebro é comparado a um computador digital e a mente a um programa de ordenador, com inputs e outputs apropriados. As consequências são óbvias, o cérebro, tal como um computador ( não  se  trata  de  uma comparação figurada ou  metafórica, mas literal ) não se caracteriza ao nível do seu funcionamento neurofisiológico e consciente, mas ao nível de um sistema de processamento de informação.
      Searle reconhece uma tradição no materialismo moderno que permite compreender os fundamentos epistemológicos que estruturam a defesa das suas posições, relativamente a uma filosofia da mente. É possível identificar um corpo teórico  organizado com base em alguns princípios fundamentais. Por um lado, afirma--se o carácter intrinsecamente objectivo da realidade, a que o conhecimento científico tem acesso. A ciência é objectiva não, apenas, porque é independente de todos os pontos de vista, mas, sobretudo, porque possui os mecanismos teóricos e instrumentais próprios que lhe permite apropriar-se objectivamente da realidade. A este princípio associa-se, por outro lado, a certeza de que a realidade física, objecto da ciência, é susceptível de uma total apreensão cognitiva. Para a ciência todo o universo é cognoscível, e é-o, porque, em última instância, a multiplicidade do real encontra a unidade das coisas no facto de todas elas serem de natureza física.
      Transpondo estes mesmos princípios para o plano de uma filosofia do mental, as consequências parecem evidentes. Há que recusar todo o tipo de dualismos e de mentalismos. O estudo da linguagem, das crenças e desejos, ou da cognição, isto é, dos estados mentais em geral, deverá obliterar, pura e simplesmente, o recurso à consciência ou à subjectividade. A ciência cognitiva institui, como objecto da sua investigação, os fenómenos que são estrita e objectivamente observáveis, ou seja, adopta o ponto de vista de  terceira pessoa. O estudo da mente integra-se, deste modo, dentro de um quadro de contornos precisos, que é a metodologia que assenta na observação da conduta. Trata-se de uma exigência radical de cientificidade, em que a objectividade e o rigor são condições de  base. É mediante a conduta que poderemos entender se algum outro sistema ( metodologia de terceira pessoa ) tem ou não tem estados mentais e  quais  são  as  suas  propriedades.  Identificam-se  aqui  as  posições radicais do " condutismo " e do " funcionalismo ", com as suas nuances, ao estabelecerem a conexão mente-conduta ou processos internos-critérios externos, respectivamente.
      Searle, como dissemos, é um critico acérrimo da concepção materialista do mental, tal como recusa as posições defendidas pelas teses dualistas. O facto de se centrar,  particularmente,  em  torno  dos   argumentos   dirimidos  pelos  materialistas, resulta, tão só, do carácter de alguma consensualidade que estes suscitam no mundo da filosofia  e da ciência da mente.
      Vejamos, então, quais são os contra-argumentos que Searle nos oferece.
      Em primeiro lugar, o autor afirma a importância da consciência como uma das características dos fenómenos mentais. É suficientemente claro quando refere: " não há maneira de estudar os fenómenos da mente sem estudar, implícita ou explicitamente, a consciência. A razão básica é que não temos realmente noção alguma do mental fora da nossa noção de consciência ". Parece-nos que esta é uma das afirmações mais importantes  e de maior alcance para compreendermos a postura de Searle em relação à compreensão da mente. É através da interpretação da consciência que se pode oferecer um quadro de elucidação do que é especificamente humano, como a linguagem, o conhecimento, o amor ou a angústia. Um mundo sem tais estados e eventos mentais conscientes, perde qualquer conteúdo de sentido para o homem que se situa face a ele. A questão não será, então, a existência da consciência, mas como é possível o cérebro, entidade fisiológica, produzi-la, porque é um facto real e irredutível que existe como qualquer outra coisa no Universo.
      Da consequência deste princípio resulta que só é possivel conceber um estado  mental  desde  que  ele  seja dado à consciência. Por outras palavras, se  a  maior  parte dos fenómenos mentais ocorrem, num  momento dado, independentemente da consciência, tal significa apenas que estamos  perante  estados inconscientes  derivados dos fenómenos conscientes. De outro modo, não haveria possibilidade alguma para se enunciar esses fenómenos. " A noção de estado mental inconsciente implica acessibilidade à consciência. Não temos noção alguma do inconsciente excepto como aquele que é potencialmente consciente ".
      Em correlação com a existência irredutível da consciência, é necessário afrimar, em oposição a uma perspectiva epistemológica e ontológica de terceira pessoa, a dimensão subjectiva do mental. Consciência e subjectividade caracterizam a actividade mental humana. A relação que cada um estabelece com o mundo, no plano ( consciente ) das suas crenças e desejos, insere-se no âmbito das suas perspectivas pessoais e subjectivas. Negar a subjectividade vivida no plano da consciência  individual é tratar  o  mental  segundo  um  sistema  de  produção de  causas e  efeitos  ( " funcionalismo " ),  ou  reduzi-lo  ao que é objectivamente  observável  ( " condutismo " ) ou,  simplesmente, elidir os estados mentais, por se tratar de algo vazio e pouco sério ( " materialismo eliminativo " ). Ou, ainda, atribuir aos estados mentais características computacionais ( " IA forte " ).  Qualquer uma destas posições alicerça--se no pressuposto  de que uma concepção científica da realidade exige a eliminação de toda a componenente subjectiva ( preocupação de ordem epistemológica ) e de que não há elementos subjectivos no real que não possam ser convertidos a uma ordem de objectividade ( preocupação onto-epistemológica ).
      Poderíamos atender aos contributos da física quântica e da teoria da relatividade  e reconhecer o papel da subjectividade  (e da consciência) na  definição  e construção do   objecto  do  conhecimento.  Mas,  continuando  com  a   análise   dos argumentos de Searle em defesa da sua filosofia do mental, esta supõe uma ontologia subjectiva dos estados mentais, o que conduz, liminarmente,  a  recusar  a metodologia de investigação que se orienta, em exclusivo, para as condutas objectivamente observáveis.
      A preocupação epistemológica objectivista sugere que se não escaparmos da subjectividade e da consciência não será possível constituir uma ciência da mente. O problema é, então, colocado
(erradamente) em termos de ou " introspecção" ou "conduta ". A conduta observada  é  que pode eleger-se como objecto da ciência, sendo intolerável que haja ontologicamente realidades não observáveis, privadas, subjectivas, e que epistemologicamente  se  assista  a  uma  dissonância  entre  o  plano individual das experiências mentais vividas e o que os outros conhecem como observadores exteriores. Assim, se impõe uma ontologia de base  epistémica, condutista e de terceira pessoa.
      Para Searle tudo isto resulta de equívocos. A "solução " tradicional para o " problema das outras mentes " é inconsistente. A legenda  mesma-conduta-ergo-mesmos-fenómenos-mentais não é aceitável. Se pensarmos em objectos do mundo com comportamentos conscientes ( cães e gatos, por exemplo ) e objectos que o não são  ( um automóvel, um rádio ), reconhecemos que não nos baseamos, para fazer essa distinção, no fenómeno da " conduta" que esses objectos nos podem oferecer, mas na concepção causal que nós próprios construímos relativamente ao funcionamento das coisas no mundo. Estaria  aqui, segundo o autor, o erro do teste de Turing. Melhor, a evidência dessa distinção reside no conjunto dos nossos próprios saberes e capacidades mentais ( Background ), que nos leva a estabelecer relações com o mundo, integrando-  -nos nele. Isolar a conduta é um erro, erro que reside na  ilusão  de  que  a  simples observação é suficiente ( e desejável ), para  termos  acesso  ao  conhecimento  dos fenómenos  mentais.  O que  devemos é atender  à " combinação  da  conduta  com  o conhecimento dos apoios causais da conduta que forma a base do nosso conhecimento " .
      As relações entre a epistemologia e a ontologia não são questões despiciendas. Sabemos que a construção de processos eficazes (  a nível da metodologia e da definição do objecto científico ) de inteligibilidade do " real "  coloca problemas de natureza epistémica. Searle reivindica  ( é um  facto a polémica que a problemática aqui envolvida coloca à epistemologia contemporânea ) uma espistemologia do mental definida em termos de uma investigação orientada, não para a determinação de uma ontologia a posteriori, mas para a identificação de uma ontologia preexistente.
      É para nós evidente o núcleo de questões aqui suscitado. As relações entre uma filosofia do mental e uma meta-filosofia do mental exigiriam uma investigação própria, cujo alcance não se pode limitar a breves referências. A obra de Searle é, no seu conjunto, um corpo teórico complexo e controverso, suficientemente motivador para ulteriores análises e reflexões. Limitemos-nos, por agora, em assinalar aqueles aspectos que nos parecem essenciais e que ancoram as suas posições, no que concerne à compreensão do fenómeno dos estados mentais.
      O fenómeno que Searle desinga por causação intencional permite-nos compreender melhor a sua afirmação sobre o carácter meramente contingente que caracteriza as relações entre os estados mentais e a conduta.. A consequência significa que é possível a existência de estados mentais sem a conduta e vice-versa. " Na vida real a nossa conduta é crucial para a nossa mesma existência, mas quando estamos a examinar a existência dos nossos estados mentais como estados mentais, a conduta correspondente não é nem necessária nem suficiente para a sua existência ".  A perspectiva condutista é aqui particularmente atingida na visão que formula ao  encarar como essencial a conexeção entre mente e conduta. Searle sugere várias experiências no campo da neurofisiologia para criticar essa visão e confirmar a sua teoria da intencionalidade, que recusa toda a visão reducionista e simplista acerca das relações mente-conduta ( experiências realizadas por Wilder Penfield de Montreal e outras que remontam a William James ).
      Antes de explicitarmos, concretamente, como Searle entende que o problema Mente-Corpo pode ter uma solução, refira-se os últimos argumentos com que  pretende abalar os princípios teóricos que enformam as concepções actualmente dominantes no âmbito da filosofia da mente.
      Contra a visão optimista da cognoscibilidade total da realidade ( logo o mental, como coisa real,  não escapa a esse optimismo ) , propõe-se um ponto de vista mais moderado. Se potencialmente é positiva essa crença, é necessário reconhecer que são as  características dinâmicas do nosso cérebro que nos colocam, por intermédio dos seus produtos, numa atitude cognitiva face ao mundo. Construímos a filosofia, a ciência, a linguagem ( segundo Searle, por excesso de neurónios ) como instrumentos de interpelação da realidade, mas não podemos captá-la na totalidade dos seus fenómenos. Sabemos que há limites, embora não possamos fixar esses limites. O processo de cerebralização ( estruturas neurofisiológicas ) condiciona-nos e determina-nos. Mas a essa crença associa-se o conceito de " físico " como  res  extensa ( de origem cartesiano ).  Curiosamente, tanto o dualismo como o monismo materialista partilham, em traços  gerais,  da  mesma  concepção  acerca  do  que  é o " fìsico ". O importante, como nos diz Searle, é retorquir a falácia da oposição  entre o " físico " e o " mental" que daí decorre. A teoria da res extensa cartesiana  não é aplicável nem à compreensão do que  é físico, nem à compreensão do que não  é.
      Que alternativa se pode oferecer, então, ao estudo das relações Mente-Corpo? Como entender os fenómenos mentais? As perspectivas dicotómicas ( ou dualismo, ou materialismo ) não parecem satisfazer qualquer  resultado  que  se  pretenda  sério.  No mundo parece-nos óbvia a existência de realidades mentais, como os sentimentos e os pensamentos, as crenças e os desejos, com características que nos levam a classificá-las como conscientes, subjectivas e imateriais. Também as realidades físicas são para nós evidentes, possuem extensão, massa e interagem em processos de causalidade. Ao transpormos estas evidências para o problema Mente-Corpo, deparamos com dificuldades, dificuldades que resultam de se procurar negar ou desvalorizar um ou outro tipo de realidade. A doutrina com mais seguidores é, como já o dissemos, aquela que, bebendo no desenvolvimento das ciências físicas, tende a negar, de um modo ou outro, a existência de estados mentais subjectivos e conscientes.
      Segundo Searle, a nossa via mental é um facto e nela se alinham quatro características, a consciência, a subjectividade, a intencionalidade e a causação mental. Perceber a actividade mental e as relações Mente-Cérebro exige, precisamente, que se considerem  essas várias dimensões.
      Todos os fenómenos mentais são mentais porque são causados por processos que ocorrem  no cérebro. Daí se poder aventar algumas hipóteses, como, por exemplo, a que decorre da aplicação da anestesia cirúrgica. É possível accionar o funcionamento do sistema nervoso central,  no sentido de ele produzir um determinado estado mental, sem que haja qualquer estimulação externa. Do mesmo modo, acontecimentos que não desencadeiam actividade cerebral não produzem fenómenos mentais.
      Os fenómenos mentais são causados pelos mecanismos cerebrais. Mas não é suficiente esta afirmação para compreendermos a sua fundamentação biológica. Causados e realizados na estrutura do cérebro, ou seja,  a causa são os processos cerebrais, a nível neuronal ou modular, enquanto se realizam, simultaneamente, na estrutura neuronal
      A intuição de Searle para a resolução das relações Mente-Cérebro baseia-se, por analogia, na distinção entre um nível micro e um nível macro, comum nos sistemas físicos. A convivência entre esses duas instâncias leva-nos a dizer que  o  que  se  passa ao nível da superfície dos fenómenos advém das características dos sistemas em que eles se inserem. Por outras palavras, os resultados de superfície caracterizam o que é macro no sistema, sendo esses resultados causados  pelo  comportamento  dos  micro--elementos.
      Transpondo a distinção micro/macro para o cérebro, poderemos encará-lo como um sistema, cujo comportamento é similar ao conjunto dos fenómenos naturais. As coisas mentais são " causadas por  " e  " realizadas nas "  micro-estruturas neuronais  que constituem o sistema cerebral.
      Se os fenómenos mentais são causados pelo cérebro e são, precisamente, características dele, então a consciência, a intencionalidade, a subjectividade e a causação, têm uma explicação plausível, permitindo-nos uma solução aceitável  em termos de resposta para o problema  Mente-Corpo.
      Mecanismos neurofisiológicos causam a consciência, sendo a maior parte da consciência, se não toda,  intencional. " Em geral, em qualquer estado consciente, o estado dirige-se até uma ou outra coisa, incluindo aquele que se dirige ao que não existe, tem neste sentido intencionalidade. Para um grupo  de casos muito extenso, a consciência é, efectivamente, consciência de algo e o  " de "   na   "  consciência de " é o  " de "   intencionalidade " .
      Há uma conexão íntima entre consciência e intencionalidade. Se se pode proceder a uma análise isolada da estrutura lógica do fenómeno da intencionalidade, qualquer concepção que vise uma teoria geral exige uma compreensão pregnante do fenómeno dos estados conscientes. Mais, a teoria deverá abranger os estados inconscientes, que sendo também eles intencionais, são potencialmente conscientes ( cf. princípio de conexão: todos os estados intencionais inconscientes são, em princípio, acessíveis à consciência ).
      As experiências conscientes são experiências dirigidas para alguma coisa e sempre segundo um determinado ponto de vista, uma perspectiva, uma moldura que as configura. A esta perspectiva, Searle designa por contorno de aspecto. " Poderíamos dizer que todo o estado intencional tem um certo contorno de aspecto, e este contorno de aspecto é parte da sua identidade, parte do que o faz ser o estado que é ".
      A subjectividade, outras das características dos fenómenos mentais, assume grande importância para os problemas que se colocam a uma filosofia da consciência.  Searle  refere algumas dificuldades, ancoradas em determinados modelos de interpretação da realidade, que impedem a aceitação de se constituir uma teoria científica que reconheça a subjectividade como um facto objectivo ( um facto objectivo da biologia ). O que ele propõe é que se encare o termo " subjectivo " como uma categoria ontológica ( o que efectivamente existe ) e não como uma categoria epistemológica. O fenómeno da dor pode elucidar-nos. Se eu tenho consciência de uma dor localizada,  tenho-a como um facto indesmentível, sinto-a em mim como algo real mesmo. O meu estado de consciência é uma característica do meu cérebro, cuja dimensão consciente não pode ser partilhada por nenhum outro. É este o sentido da existência de  subjectividade. " E o que é verdade para as dores é verdade para os estados conscientes em geral. Todo o estado consciente é sempre o estado consciente de alguém. E,  do mesmo modo  em  que  tenho  uma  relação  especial  com  os  meus estados conscientes, que não é como a minha relação com os estados conscientes de todos os outros, eles têm uma relação com os seus estados conscientes  que não é igual à relação que eu tenho com os seus estados conscientes. A subjectividade tem a consequência adicional de que todas as minhas formas conscientes de intencionalidade, que me dão informação sobre o mundo independente de mim, são sempre de um ponto de vista especial. O mundo não tem mesmo nenhum ponto de vista, mas o meu  acesso ao mundo, através dos meus estados mentais, é sempre segundo uma perspectiva, segundo o meu ponto de vista "  .
      A ontologia de primeira pessoa, defendida aqui de um modo suficientemente claro, não deve deixar dúvidas, no que concerne a tentativas de identificação do autor com a psicologia introspectiva ou com o chamado acesso privilegiado, veementemente por ele recusados  como modelos condenados ao fracasso. O apelo de Searle, é que se reconheçam os factos ( factos externos à problemática da distinção observação/ coisa observada ), e estes indicam-nos que o processo de evolução biológica produziu sistemas cerebrais, sistemas que têm a caraterística de causarem estados conscientes irredutivelmente subjectivos.
      Ora, o que se releva é que no Universo há estados mentais, muitos são conscientes, têm intencionalidade e todos possuem subjectividade. O pensamento e a liguagem, as dores e as percepções, são produzidos por processos que ocorrem no cérebro. A causação mental pode ser descrita por uma relação causal abaixo-acima, ou seja, " os fenómenos macromentais são causados por microfenómenos de nível inferior " , por outras palavras, ambos os fenómenos são causalmente reais, a intencionalidade de provocar uma acção concreta consciente (nível superior) e a actividade electroquímica que ocorre na estrutura neuronal (nível inferior). 


3.   Intencionalidade, Rede e " Background "
     
      A propósito do  que  Searle  designa  por  Background, consideremos o que ele próprio nos   diz:  "  A  tese  do  Background   é,  simplesmente,  esta:   os  fenómenos intencionais, tais como significados, compreensões, interpretações, crenças, desejos e experiências, somente funcionam dentro de um conjunto de capacidades de Background, que não são em si mesmas intencionais. Outro modo de enunciar esta  tese  é dizer que toda a representação, seja na linguagem, seja no pensamento ou na experiência, só pode ter êxito ao representar um dado conjunto de capacidades não representacionais. No meu jargão técnico, os  fenómenos  intencionais  só determinam condições de satisfação em relação a um conjunto de capacidades que não são intencionais ".
      Os conceitos que estão aqui em causa (o jargão técnico) relacionam-se, directamente, com uma determinada concepção do comportamento humano. Searle constrói uma filosofia da acção (em oposição quer ao mentalismo quer ao behaviorismo), pretendendo dar resposta a alguns dos problemas que constituem o núcleo essencial das suas preocupações, nomeadamente, a questão   da relação Mente-Corpo ou da identificação, que rejeita, do cérebro como um ordenador digital.
      Segundo o autor, as acções humanas possuem características próprias, implícitas, que as tornam distintas em relação a todos os outros acontecimentos do mundo natural. A tipologia das acções é mais diversificada que a tipologia dos movimentos corporais; só algumas descrições são relevantes para o propósito das acções; não há nenhum nexo entre a concretização da acção e a sua observação pelo sujeito da conduta; os princípios de identificação e de explicação são inerentes à estrutura da acção.
      O cerne de toda a acção humana reside na sua intencionalidade, conferindo-lhe um conteúdo fundado, que se pode realizar em diferentes tipos ou modos psicológicos. O conteúdo da intencionalidade plasma-se num determinado modo ou tipo mental      (crença, desejo, intenção; ao  mesmo  conteúdo  podem  corresponder  diferentes  tipos, como vemos). Por outro lado, poder-se-á falar em condições de satisfação, desde que o conteúdo dos estados mentais estejam em harmonia com o mundo que representam, ou não (êxito ou fracasso). No que concerne à causação intencional, essencial para a descrição da estrutura do comportamento, ela diz respeito à relação causal (cujas leis se afastam do princípio comum da  causalidade)  que  se  estabelece  entre  os  estados mentais e os efeitos produzidos que aqueles representam. Tal significa que o conteúdo do comportamento são os estados mentais internos que o causaram.
      É a intencionalidade que nos esclarece a relação entre as componentes da acção, a mental e a física. Há uma intenção mental em produzir determinados eventos físicos, segundo condições de satisfação. Os fenómenos mentais são causados por processos cerebrais que fazem ocorrer ( mais ) aquilo que mentalmente representam, dando-lhe causa. É este o conceito de causação intencional ou mental que Searle propõe, algo faz acontecer alguma coisa mais.
      Searle considera necessário distinguir, na estrutura intencional das acções, aquelas que obedecem a uma prévia ponderação e reflexão (intenções anteriores, resultam do que se disigna por raciocínio prático ) e as que são imediatas e espontâneas ( intenções na acção). Trata-se de uma distinção importante que nos deve evitar cair em  equívocos. Se toda a acção é intencional, desde logo porque esboçamos uma finalidade e os meios para a alcançar, ou seja, temos sempre alguma concepção do que fazemos, nem toda a intenção pressupõe deliberação (raciocínio prático),  enquanto análise prévia dos " prós " e dos " contra " da realização da acção. Neste último caso, a intenção acompanha o decurso da acção.
      Detenhamo-nos agora, concretamente, nas acções que são fruto de um raciocínio prático. Todo o processo de reflexão e de deliberação pressupõe algum conflito. Temos de avaliar situações, poderando os aspectos positivos e negativos, que sempre  concorrem na realização de um projecto concebido. Decidir é o acto pelo qual nos determinamos a agir. Perante o quadro das vias possíveis  para  a  acção,  optamos por uma delas. A escolha efectuada traduz que da comparação dos motivos resultou a relevância de uns em detrimento de outros. Realizar, efectivamente, a acção é passar da intenção ao acto que a concretiza, mobilizando energias tendentes a executar, na prática, aquilo que se decidiu.
      A análise da acção humana (análise que tem sido objecto de investigação por algumas das correntes da filosofia contemporânea, como, por exemplo, a Filosofia Analítica e a Fenomenologia e a Hermenêutica, o que significa que não é um assunto tão negligenciado como Searle chegou a sugerir) revela-nos que agir significa produzir um efeito, implicando a vontade e a consciência. E o que fazemos conscientemente (os estados intencionais inconscientes são potencialmente conscientes, como já o dissemos) envolve, portanto, uma finalidade, uma intenção. Só age humanamente aquele que sabe o que faz e porque o faz. A intenção é a parte activa, é sempre intenção de fazer algo.
      Por tudo o que temos vindo a dizer, é agora possível tentar entender o sentido dos conceitos de Rede e Background,  e como se articulam em relação à explicação das acções. Deveremos reter, como princípio, que as acções humanas possuem características peculiares que as distinguem de todos os outros acontecimentos naturais que ocorrem no mundo. Daí, se exigir, também, um processo de explicação particular, tendo em conta essas mesmas especificidades. Já o dissemos, quando considerámos que a causalidade dos estados mentais não se confunde com a causalidade dos fenómenos naturais. A filosofia da acção que Searle pretende elaborar, é, neste ponto, suficientemente elucidativa e precisa.
      Toda a acção é impulsionada por estados mentais, psicológicos. Ora, estes estados mentais, esta energia mental, sendo a causa são, simultaneamente, a representação dos efeitos que causam. Explicar as acções é reconhecer uma similitude substancial, entre o próprio conteúdo da explicação do comportamento e o conteúdo da causa que o provoca. Se todos os estados mentais são intencionais (são as próprias intenções), são-no pelo facto de se estruturarem na elaboração do raciocínio prático que conduziu à intenção de provocar uma determinada acção.
      Vimos que os estados intencionais determinam as suas condições de satisfação. Mas, geralmente,  qualquer  estado  exige  um  conjunto  de outros  estados,  ou   seja,  uma crença ou um desejo particulares apelam, como deles fazendo parte, para uma Rede de outras crenças e desejos.
       A este propósito, diz-nos Searle:
      " 1. Os estados intencionais não funcionam autonomamente. Não determinam isoladamente as condições de satisfação.
        2. Cada estado intencional requer para o seu funcionamento uma Rede de outros estados intencionais. As condições de satisfação só se determinam de maneira relativa à Rede.
        3. Inclusive a Rede não é suficiente. A Rede só funciona de maneira relativa a um conjunto de capacidades de Background.
       4. Estas capacidades não são e não podem ser tratadas como meros estados intencionais ou como parte do conteúdo de algum estado intencional particular.
       5. O mesmo conteúdo intencional pode determinar diferentes condições  de satisfação ( tais  como as  condições  de  verdade ) e com  relação  a  algum Backgroung não determina nenhuma em absoluto " .
      A Rede é, por conseguinte,  um quadro de estados intencionais, em que cada estado particular só adquire o seu significado próprio  ( só funciona ) inserido  no conjunto de que todos fazem parte integrante.
      Se cada estado intencional tem de ser referenciado a uma Rede de outros estados, esta,  por sua vez, é parte do  Background .
      Os argumentos a favor do Background - visando uma investigação que pretende esclarecer as relações entre a consciência, o inconsciente e a intencionalidade -  mereceram de Searle algumas explicações, que desenvolveu ao longo de vários trabalhos, no sentido de explicitar e consubstanciar essa hipótese. Numa obra de 1979, " Expression and Meaning ", propõe-se investigar o  sentido  oculto  que  percorre  um enunciado ambíguo (rigorosamente nada há de oculto e ambíguo ou metafórico, o que se pretende dizer é que " o mesmo significado literal determinará condições de satisfação diferentes, por exemplo, diferentes valores de verdade, com relação a diferentes suposições de Background, e alguns significados literais não determinarão condições de verdade por causa da ausência de pressuposições de Background apropriadas ".), ou seja, aquele em que o significado expresso não coincide rigorosamente com o significado que o emissor pretende atribuir. Partindo da análise do enunciado " Pode-me passar o sal ? ", desenvolve e estabelece um " princípio de conversação ": em todo o processo de comunicação o locutor emite uma mensagem que diz mais ao receptor do que diz efectivamente, apoiando-se sobre um Background de informações partilhado por ambos. Os interlocutores entendem-se em função das regras fixadas pelos actos de fala directos. O receptor reage sempre de um modo esperado pelo emissor, pois identificou os elementos linguísticos que presidem em cada " acto ilocucionário".
      Não pretendemos afastar-nos demasiado da questão essencial que aqui se coloca. Contudo, parece-nos importante reter algumas ideias essenciais relativas à pragmática da língua.
      Searle e Austin, filósofos pertencentes ao movimento da filosofia analítica ("Escola de Oxford "), dedicaram-se ao estudo das linguagens quotidianas, particularmente à análise  do  uso  de  determinadas  expressões  dentro  de  contextos linguísticos e extralinguísticos precisos. Influenciado por Austin, Searle constrói a sua própria teoria, que elimina toda a significação prévia ao acto de fala. "Acto", porque acção que se realiza através de uma emissão linguística. Por outro lado, este " acto " ilocucionário é a unidade primordial que está na base de toda a  comunicação  humana. Em   cada   acto  de  fala  Searle  distingue   um conteúdo   proposicional  e  a   força ilocucionária que o acompanha. Frases diferentes, ou a mesma frase em contextos distintos, podem ter em comum a mesma proposição, e a força ilocucionária variar, segundo o modo como a frase é proferida, ou de acordo com o objectivo que é explícito.
      A filosofia da linguagem definida por Searle tem consequências amplas. Na base das suas teses reconhece-se a impossibilidade de separar a actividade falante do seu contexto interhumano, o que desde logo implica que os comportamentos coerentes, no que concerne ao uso da linguagem, se apoiam em regras pragmáticas e não na lógica pura. Regras que impedem a retradução das linguagens naturais numa linguagem simbólica formal. Se tivermos que falar na moderna teoria da significação e da comunicação, apercebemo-nos que estas concepções rompem com o logicismo de Russell e do Wittgenstein do " Tractatus " , aproximando-se das posições de Perelman e Meyer, por exemplo. A significação é hoje perspectivada em função dos contextos do uso comunicacional da linguagem, e não já apenas em função de um sistema formal de regras lógicas, sistema  que é sempre redutor.
      Voltando à hipótese do Background, poderemos agora compreender, com maior rigor e precisão, como tal hipótese é subsidiária de uma teoria da representação. Partindo da análise das proposições, " a mesma expressão literal pode assumir a mesma contribuição na emissão de uma grande variedade de orações e contudo, embora essas orações se compreendam literalmente - não há questão alguma de metáfora, ambiguidade, actos de fala indirectos, etc. -, a expressão será interpretada diferentemente  nas  diferentes  orações.  Porquê ?  Porque  cada  oração  interpreta-se tendo em conta um Background de capacidades humanas (habilidades para tomar parte em certas práticas, saber como, modos de fazer coisas, etc.), e essas capacidades fixarão diferentes interpretações, mesmo se o significado literal das expressões permanece constante ".
      O significado literal das proposições é absolutamente essencial, temos de atender à composição semântica e estrutural das frases, mas essa componente representacional não é só por si suficiente, é necessário apelar a outros elementos não representacionais e que produzem os seus efeitos, isto é, todo o enunciado postula um Background de capacidades. Todo o enunciado e não, como aparentemente se poderia supor, apenas aqueles que, pelas suas características lexicais e estruturais, encerram alguma ambiguidade ou simulam conteúdos implícitos que a emissão literal oculta. Nenhuma mensagem, nenhuma oração é suficientemente explícita, ou se quisermos, literal em absoluto, o que implica que qualquer esclarecimento adicional à interpretação, na tentativa de fixar um sentido preciso,  é por si inconsistente. Não só porque seria sempre possível recorrer a novos esclarecimentos suplementares, mas também porque estes seriam objecto de diferentes interpretações num processo interminável de representação.
      Searle alerta-nos para o facto de que as suposições de Background têm um alcance mais amplo que a mera interpretação de orações, afectam a estrutura formal de toda a linguagem. Sem essas suposições qualquer significado literal é ininteligível. Por mais que se preencha a sua inevitável incompletude, as condições de verdade só se podem determinar em função de capacidades de Background.  " Se  se faz uma ruptura radical  entre  significado  e  Background  então,  pelo  que   respeita   ao   significado, qualquer coisa vale; isto implica que a compreensão normal ocorre só relativamente a um Background ".
      Procuremos agora entender as relações entre a consciência, o inconsciente e a intencionalidade, que Searle estabelece a  partir da tese do Background. O que importa aqui não é aprofundar uma teoria da representação, mas recorrer a esta para elaborar uma teoria da mente.
      Primeiramente, deve-se recusar a imagem do mental como um repertório (um inventário)  de estados mentais, alguns conscientes, outros inconscientes. As crenças, os desejos, os nossos conhecimentos, não estão armazenados no cérebro. O que ocorre a nível cerebral  são conexões neurofisiológicas complexas, distintas da consciência, mas que causam, às vezes, estados conscientes que possibilitam o pensamento e a conduta em situações determinadas. Por seu turno, os estados inconscientes significam as capacidades cerebrais para gerar consciência.
      É a hipótese do Background que nos esclarece as várias relações que aqui se cruzam. Todos os conteúdos mentais requerem, por mais explícitos que possam ser, um conjunto de capacidades de Background. A intencionalidade consciente exige, como condição de satisfação, algo mais que não é, nem pode ser, dado pelo conteúdo, em si, desse mesmo estado. " Para ter um pensamento consciente, tem-se que ter a capacidade de gerar muitos outros pensamentos conscientes. E esses pensamentos conscientes requerem todos eles capacidades adicionais para a sua aplicação " .
      A distinção entre Rede e Background  (assim como a afirmação de que a Rede é parte do Background) surge de um modo claro se considerarmos que, no âmbito das capacidades referidas, algumas foram adquiridas de um  modo  consciente, permitindo-nos realizar acções conscientemente, aplicando regras,  leis,  desejos,  crenças.  Searle sugere o exemplo das regras de basebol que qualquer um pode saber se lhe ensinaram. Por outro lado, o exemplo ainda é seu, ninguém nos ensinou que os objectos são sólidos. O essencial da distinção decorre deste facto. Contudo, as condições de satisfação dos estados intencionais  são sempre relativas a um conjunto de  capacidades  de  Background.  "  Embora  o   Background  não   seja,  em   si  mesmo, intencional, qualquer manifestação do Background, quer seja na acção, na percepção, etc., tem que entrar em jogo sempre que há alguma intencionalidade, consciente ou inconsciente. (...) O Background consiste em capacidades mentais, disposições, posturas, modos de comportamento, saber como, savoir faire, etc., os quais só podem  manifestar-se quando quando há algum fenómeno intencional, tal como uma acção intencional, uma percepção, um pensamento, etc. " 

 4.   Crítica ao Paradigma Dominante 
     
     As posições de Searle defendidas e propostas como solução para o problema Mente-Corpo, articulam-se, coerentemente, com a crítica que formula às concepções, dominantes em Filosofia e Psicologia, que pretendem estabelecer uma analogia entre os processos realizados a nível do cérebro e o funcionamento dos computadores digitais. De acordo com este paradigma dominante, a analogia sugerida fornece-nos uma interpretação dura, isto é, deve ser encarada num sentido literal e não metafórico. Há algumas ideias básicas que nos dilucidam sobre as teses essenciais da afirmação computacional. Desde logo, trata-se  de negar  o  carácter  substancialmente  biológico  da  mente humana. A inteligência pode ser definida  segundo   uma   actividade  de  simples  manipulação  de  símbolos  físicos.  É possível pensar-se em sistemas, tecnologicamente evoluídos, capazes de produzirem inteligência, desde que tenham um hardware compatível e programas correctamente concebidos. No cerne deste argumento, ressaltam alguns dos princípios que enformam a corrente principal da actual Ciência Cognitiva: o cérebro é comparado a um computador e os fenómenos mentais  comparados   a  um programa  computacional. A Ciência Cognitiva só tem a beneficiar se atender aos contributos que a inteligência artificial (IA) puder facultar. Por outro lado, afirma-se, com alguma ênfase, que a cognição humana é, fundamentalmente, resultado de processos mentais inconscientes e,  por esse mesmo facto,  computacionais. Não é exagerado concluir, que a  descrição do funcionamento cerebral é análoga à descrição do funcionamento dos ordenadores digitais.
      Searle, procurando ser preciso na sua crítica à razão cognitiva, estabelece, com precisão, as versões que caracterizam o paradigma dominante: " Chamo IA forte ao ponto de vista de acordo com o qual tudo aquilo que consiste em ter uma mente é ter um programa. IA débil ao ponto de vista de que os programas cerebrais ( e os processos mentais ) podem simular-se computacionalmente, e cognitivismo ao ponto de vista de que o cérebro é um ordenador digital " .
      A crítica de Searle centra-se, particularmente, nos princípios que configuram e sustentam a versão cognitivista (cujos pressupostos já foram expostos).
      O cognitivismo, nos seus fundamentos essenciais, tem uma origem, uma história. Searle designa-a por História Primigénia, fazendo-a remontar aos trabalhos de Turing, que, em traços gerais, procura relacionar a inteligência humana e os processos computacionais.
       Turing propõe um jogo ("o jogo da imitação "). Nele competem um ser humano, A, e  um  computador,  B.  Perante  as  perguntas  formuladas,  A  tem  como objectivo convencer, com as suas respostas, uma terceira entidade, C, que é o ser humano, e B visa que C o identifique (erradamente)  como humano, ou, pelo menos, que tenha dificuldade em destrinçar o humano e a máquina.  Diz-nos, a propósito, M.S. Lourenço: " O argumento de Turing é o seguinte: se acerca de uma pessoa que desempenhe o papel de A se  está autorizado  a  afirmar  que  ela  pensa,  na  base  das estratégias que ela desenvolveu para iludir C, então também se está autorizado a dizer que o computador pensa, se este desempenha o mesmo papel do que A ou o seu comportamento é idêntico ao deste. O teste de Turing é típico da tendência behaviorista. De acordo com esta tendência, um computador tem estados ou operações que podem ser considerados como estados de consciência de um ser humano, de tal modo que se pode fazer a atribuição destes estados ao computador. Inversamente, como o computador é destituído de intencionalidade, o mesmo argumento pode ser usado para demonstrar que se pode eliminar a intencionalidade na filosofia da consciência "  
      Os pressupostos teóricos deste jogo estão, nesta citação, devidamente explicitados. Se admitirmos que algumas das capacidades mentais humanas são algorítmicas e que para todo o algoritmo há sempre uma máquina de Turing que pode  processar o  cálculo algorítmico, então é possível simular o mesmo programa implementado no cérebro num ordenador digital. Poderemos dizer que, embora se trate do mesmo algoritmo, a nível do cérebro humano estamos perante processos conscientes (intencionais), enquanto que  a  nível  mecânico  os  processos não   são  conscientes (intencionais).  Mas o  argumento  da  simulação    em   nada   reduz a  sua pertinência, pois é razoável admitir que muitos processos mentais não são conscientes e são,  de  igual  modo,  computacionais.  O  que  se  pretende  é construir programas que, sendo análogos aos implementados no cérebro, nos esclareçam sobre o modo de funcionamento dos processos mentais. Daqui se infere que se consideram similares os processos internos realizados pelos dois modelos de ordenadores, o humano e o mecânico.
       Para se compreender, com rigor, as críticas de Searle às teses cognitivistas, é necessário atender a mais algumas questões, que são cruciais. Não são os programas computacionais meramente sintácticos, enquanto as mentes, além de uma estrutura formal de sintaxe, não possuem um conteúdo semântico ?
      De acordo com a hipótese cognitivista, o problema é irrelevante. À estrutura formal sintáctica são intrínsecos os conteúdos semânticos, o que significa que qualquer alteração no plano semântico arrasta, implicitamente, alterações no plano estrutural. A ciência cognitiva viabiliza, assim, a investigação dos processos cognitivos como computacionais, entendendo que estamos perante a manipulação de elementos sintácticos que simulam, ajustadamente 
(no jogo de Turing o que está em causa é o ajuste do computador ao humano),  a sintaxe cerebral.
      Searle recusa a afirmação da inerência da semântica à sintaxe. É famoso o argumento do " quarto chinês ". Com ele pretende assinalar uma demarcação fundamental: as mentes são mais complexas que qualquer programa computacional, pois além de possuírem uma estrutura sintáctica têm um conteúdo semântico, enquanto os computadores digitais (seja qual for o estádio do desenvolvimento tecnológico) se limitam à manipulação de símbolos sem " significado " . Se se aceitam fenómenos de simulação, não se podem aceitar fenómenos de duplicação, pelo facto de que nenhum ordenador digital é capaz de realizar operações com as características que são inerentes aos estados mentais.
      O argumento do  " quarto chinês " é reformulado numa fase posterior à sua apresentação. É necessário ir mais longe. Não só a semântica não é intrínseca à sintaxe,   como  a sintaxe não é intrínseca  à física.  " Não há nenhuma maneira em que se possa descobrir que algo é intrinsecamente um ordenador digital, posto que a sua caracterização como um ordenador digital é sempre relativa a um observador que atribui uma interpretação sintáctica aos aspectos puramente físicos do sistema. (...) Aplicado genericamente ao modelo computacional,  a  caracterização de  um  processo como computacional é uma caracterização de um sistema físico do lado de fora; e a identificação do processo como computacional não identifica um aspecto intrínseco da física; é esencialmente uma caracterização relativa ao observador ".
      Conclui-se do enunciado que há coisas no mundo que dependem da interpretação de um observador e coisas cujas qualidades, por serem intrínsecas, são exteriores a qualquer interpretação, existem por si e em si. A computação pertence à primeira categoria de coisas, é uma atribuição relativa a um sujeito exterior ao mundo físico.
      A partir daqui, Searle explora a sua crítica, referindo-se à " falácia do homúnculo como endémica ao cognitivismo ". Concretamente, qual é o problema que está aqui em causa ? Vimos que se  a sintaxe não é intrínseca à física e se os programas de computador se definem em termos sintácticos, então nada é intrinsecamente um ordenador digital pelas suas qualidades físicas. O recurso a um observador exterior é essencial. A solução pode ser, aparentemente, encontrada (não nos esqueçamos do problema original: a analogia entre o funcionamento do cérebro humano e o funcionamento dos ordenadores digitais)  se se admitir que, a nível dos estados mentais, o sistema funciona como se, no seu interior, houvesse um intérprete, um homúnculo, que realizasse as operações computacionais. Searle refere-se a esta solução como uma variante da falácia do homúnculo
       Uma outra solução é a chamada decomposição recursiva. Sendo os processos computacionais   organizados  a  vários  níveis,  pode-se   reconhecer  que   nos  níveis superiores do sistema as operações exigem  a presença de um observador. Contudo, a um nível inferior mais simples, o modelo reduz-se a um mero esquema " acendido-apagado ", rebocando o observador, o homúnculo. Diz-nos a propósito Searle. " A intenção de eliminar a falácia do homúnculo mediante a decomposição recursiva  falha porque a única maneira de obter a sintaxe intrínseca à física é colocar um homúnculo na física. (...) Conceder que os níveis mais elevados de computação não são intrínsecos à física é conceder de imediato que os níveis inferiores tão pouco o são " . O problema da sintaxe e da semântica mantém-se, portanto, relativamente à simulação por computador dos processos mentais. Os argumentos do cognitivismo não convencem.
      Ora, o que é convincente afirmar é que os programas computacionais não são mentes, nenhum ordenador tem poderes análogos ao cérebro humano. Vimos que as estruturas sintácticas são insuficientes para assegurar um contéudo semântico. Por outro lado, a sintaxe ( e símbolos ) não é uma qualidade intrínseca da física, mas relativa a um observador. O cérebro não é um computador digital, causa mentes que têm uma estrutura formal e um conteúdo significativo, e intencionalidade e consciência. Deste modo, não é suficiente nem aceitável explicar o funcionamento cerebral a partir das  propriedades computacionais. Dito de outro modo: "Não se pode descobrir que o cérebro ou qualquer outra coisa seja um ordenador digital, embora se lhe possa atribuir uma interpretação computacional como se pode fazer com qualquer outra coisa. O assunto não é que a afirmação  " O cérebro é um ordenador digital " seja simplesmente falsa. O assunto não tem um nível de falsidade, simplesmente não tem um sentido claro. A questão " É o cérebro um ordenador digital ? " está mal definida. Pergunta-se: " Podemos atribuir uma interpretação computacional ao cérebro ? ", a resposta é, trivialmente, que sim, posto que podemos atribuir  uma  interpretação computacional a qualquer coisa. Se o que se pergunta é: " São os processos cerebrais intrinsecamente computacionais ? " , a resposta é, trivialmente, que não, excepto, naturalmente, no caso dos agentes conscientes que intencionalmente levam a cabo computações " .
      Para concluir a crítica à razão cognitiva ("o que está mal na filosofia da mente ", expressão que esteve para constituir o título da obra de Searle que mais temos citado, expressão que só por si nos esclarece o posicionamento do autor), Searle desmistifica o conceito de processamento da informação. Os estados mentais são causados pelas operações internas cerebrais, não há processamento de informação. O cérebro é um orgão biológico como qualquer outro, cujas características próprias, a nível mental, produzem formas específicas de intencionalidade. Tem uma actividade neurofisiológica que causa e realiza os processos mentais, conscientes ou potencialmente conscientes. " O sentido de processamento da informação que se usa na ciência cognitiva está a um nível de abstracção demasiado elevado para captar a realidade biológica concreta da intencionalidade intrínseca. A " informação "  do cérebro é sempre específica de uma ou outra modalidade. É específica, por exemplo, do pensamento, ou da visão, ou da audição, ou do tacto. O nível de processamento da informação que se descreve nos modelos computacionais de cognição da ciência cognitiva é simplesmente, por outro lado, um assunto que consiste em obter um conjunto de símbolos como output em resposta  a  um conjunto de símbolos como input " .


                                    CONCLUSÃO
     
        A proposta de Searle para a solução do problema Mente-Corpo determina, no essencial, as teses que consubstancializam a sua concepção sobre os fenómenos mentais.
      O que desde logo releva é a afirmação da consciência como fenómeno mental central. Consciência, intencionalidade e subjectividade são manifestações da biologia humana, constituindo fenómenos específicos, susceptíveis de abordagem e investigação científica. Os estados mentais são causados por processos cerebrais e realizam-se a nível das suas estruturas. A crítica que empreende dirige-se não só ao " dualismo ", mas também a todas as expressões que o  " materialismo " assume, nomeadamente, o condutismo, o qual, em relação aos fenómenos psíquicos, elide as pretensões cognitivas de acesso à consciência ( à intencionalidade, à subjectividade ), propondo uma metodologia baseada nos dados objectivamente observáveis.
      A realidade dos fenómenos mentais é um facto  - " (...) entre os acontecimentos físicos do mundo há fenómenos biológicos, tais como os estados de consciência qualitativamente internos e de intencionalidade intrínseca " . -, trata-se de os apreciar correctamente de acordo com a sua natureza biológica, como a digestão ou a respiração, e segundo a sua especificidade " mental ". A alternativa não é entre a consciência ou a negação da sua realidade, por imposição de critérios de objectividade científica. Se a "autoconsciência", a "incorrigibilidade", a "introspecção" são equívocos, são-no enquanto expressões de concepções filosóficas erróneas sobre a consciência.
      Um outro ponto relevante da filosofia da mente de Searle, e que decorre das questões anteriores, é a crítica ao programa cognitivista de investigação, o qual sustenta a tese da analogia entre os ordenadores digitais e a mente humana.
      Essa analogia, nas suas formas mais ténues ou mais radicais, como a que identifica o cérebro com um computador digital e a mente com um programa de computador, é, segundo Searle, absolutamente irredutível. O cérebro é um orgão biológico específico, cujos processos particulares neurofisiológicos causam fenómenos mentais específicos. Os processos cerebrais não são intrinsecamente computacionais, embora se possa fazer uma interpretação computacional do cérebro, como, aliás, se pode fazer de muitas outras coisas. Um índice macroeconómico é susceptível de tradução e avaliação computacional, mas não é intrinsecamente computacional.
      Através da filosofia da linguagem (que afirma ser um ramo da filosofia da mente, o que estrutura, coerentemente, as suas concepções), dos conceitos de Rede e, em particular, de Background, da recusa do carácter intrínseco da sintaxe à física e da necessidade da presença de um observador/usuário que torna superveniente a computação, entre muitas outras áreas de investigação, Searle traça um quadro de reflexão alargado, que permite repensar os caminhos para a Redescoberta da Mente.
 
Outono de 1998



                                      BIBLIOGRAFIA


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